segunda-feira, 19 de setembro de 2016

"sexo biológico"

Este texto é uma tradução desta resposta.

"sexo é biológico???????????????? vai abrir um livro de biologia??????????????? não é uma construção social você tá falando de gênero???????????????"

Espero que a superabundância de interrogações seja uma indicação de que em algum nível você sabe quão completamente errada sua afirmação está.

[Aviso de disparador: discussão sobre genitais e órgãos internos]

Em primeiro lugar, quando você diz "sexo", assumo que esteja falando do que é geralmente chamado de "sexo biológico", "dimorfismo sexual" ou "diferença sexual". Especificamente, o que você está tentando dizer ou insinuar é que há duas categorias de corpos: masculino e feminino/macho e fêmea. Vou supor que você começa pelos cromossomos, que isso tem sido considerado a base "mais fundamental" do sexo por transmisóginos desde pelo menos 1979.

Um cromossomo sexual é uma bolha com uma aparência particular que aparece num cariótipo, ou num teste envolvendo tingir e microscopicamente analisar cromossomos. Cromossomos são pequenas bolhas de gosma sobrepostas que, se você as isolar o suficiente, você descobrirá que são uma corrente de DNA — o que significa que são uma corrente de pares de base (guanina e citosina, adenina e timina). O que você também vai encontrar são histonas envolvidas em cromatina. Além disso, você vai achar metilação, e todo tipo de partículas e compostos químicos porque, adivinha? DNA não é um sistema de código linear. DNA é codificado em pedaços — geralmente em triplos que costumam ser lidos como certos aminoácidos, que então se juntam pra formar blocos de proteínas. Mas a questão sobre código em triplos é que a coisa pode ficar bem complexa. Então

AGGCTTATTAGGCTCTA

pode, por exemplo, simultaneamente codificar como

AGG CTT ATT AGG CTC ta

e

a GGC TTA TTA GGC TCT a

e

ag GCT TAT TAG GCT CTA

Só pra te dar um exemplo. Agora, há sinais indicando como o código deve começar, mas esses sinais podem mudar de lugar, ou ser desativados. É também pra isso que serve metilação — ela pode ativar ou desativar os sinais de onde o código começa na corrente. Metilação em qualquer parte de um DNA pode ser ativada por todo tipo de coisa. Um estudo encontrou uma ligação entre níveis de diabetes e níveis de estresse nas avós de quem tinha diabetes — ou seja, estresse foi ligado a diabetes em netos. Só pra você ter uma pequena ideia do nível da complexidade desse código.

E essas complexidades continuam em todos os níveis. As proteínas que são formadas por aquelas sequências de DNA podem se juntar de formas diferentes dependendo da composição química do ambiente. O DNA em si — um objeto tridimensional no mesmo ambiente — pode interagir fisicamente com as proteínas ou consigo mesmo. Mas também se lembre de que estamos falando de gosma química sujeita a condições ambientais, o que inclui todo tipo de mutação. Às vezes a porra toda fica esquisita (não vou dizer que dá "errado", porque isso implica em dizer que mutações são "ruins", o que é uma besteira completa dada a necessidade de mutações pra adaptabilidade genética — e também atribui noções antropocêntricas de funcionalidade e comportamento "bom" e "ruim" pra gosma) e AGG CTT ATT perde uma letra e se torna AGC TTA tt (um frameshift — você também pode observar outras coisas, tipo mutações pontuais).  Além disso, a coisa pode ficar esquisita só quando o DNA tá sendo replicado — não é um processo de leitura perfeito, é um monte de reações químicas flutuando em gosma, e está acontecendo milhões de vezes, então a probabilidade de as coisas ficarem estranhas em vários aspectos é grande.

Mas mesmo além da codificação de DNA, no nível dos cromossomos, as coisas são meio confusas. Porque os cromossomos se unem através de gosma distribuída mais imprecisamente quando a célula está se dividindo, e as coisas podem dar errado nesse processo — podem ser perdidas, ou ir parar do outro lado, etc. Da mesma forma, há um processo chamado de crossover ou recombinação que acontece na replicação de células durante a metáfase (quando cromossomos são pareados no centro da célula antes de o núcleo se dividir) onde cromossomos apenas trocam os bagulho de lugar porque sim. E é bem aleatório onde isso acontece também, o que pode significar que códigos foram divididos ao meio ou que novos códigos foram criados.

Tudo isso nos leva ao fato de que é incrivelmente improvável esperar qualquer divisão 50/50 significativa entre cromossomos "XX" e "XY". O que funciona bem com a realidade, porque na realidade nós observamos todo tipo de variações, exatamente como esperaríamos. Agora, o que acontece quando há variação? Na maior parte do tempo, as coisas simplesmente acontecem. É tudo um monte de células. Elas fazem o negócio delas, criam pequenos órgãos, e aí se replicam pra que os órgãos cresçam e sejam mais específicos, etc. Então agora talvez você comece a ver por que esperar que elas se comportem em dois tipos perfeitinhos de padrão é completamente impreciso? Ou porque no mundo real nós observamos uma gama vasta de corpos em vez de Barbies XX e Kens XY? Mas mesmo olhando além disso, o que é que rola com o chamado "sistema reprodutor"? Bem, algumas dessas células têm a capacidade de gerar gametas — tipo "meias células" — que podem se juntar com outros gametas pra se transformar em outra bolha de órgãos. É isso que é fertilização e gravidez. É só isso que tá envolvido. Falando num geral, um tipo de gameta vai aparecer em corpos que tendem a ter uma gosma que aparece de tal jeito num cariótipo, enquanto outro gameta vai aparecer em corpos cujas células têm gosma que aparece de outro jeito no cariótipo, com toda uma variação e possibilidades. Então por que isso importa pra nós? Por que eu tô aqui sentada às 4h da manhã de natal com um pacote de salgadinho e uma taça de vinho respondendo perguntinha anônima de bosta sobre isso? Porque foi com base nessas tendências dos corpos que as pessoas construíram a noção de sexo.

O patriarcado é, basicamente, um sistema de exploração econômica que consiste em um grupo ter a si atribuído um tipo de trabalho que é valorizado, e outro grupo ter atribuído a si um tipo de trabalho que não é valorizado. Isso foi distribuído entre dois grupos generalizados de pessoas. Aquelas que tendem a ter um tipo de gameta e as que tendem a ter o outro tipo, e as que insistiram na ideia de que o trabalho delas era valioso eram os "machos", "homens", etc, enquanto aquelas que eram forçadas a ser objeto de exploração e violência eram as "fêmeas", "mulheres", etc. Como parte do processo de valorizar o trabalho masculino, homens construíram uma explicação pra desigualdade que eles afirmaram vir da natureza da realidade física. Especificamente, a noção de "diferença sexual" ou "dimorfismo sexual", ou as tendências das pessoas de produzir tipos de gametas diferentes. Pra poder justificar melhor e valorizar sua própria exploração sobre mulheres, homens construíram toda uma noção de identidade em torno disso, um ideal que pra eles calhava de estar contido no órgão que a maioria deles usava pra distribuir gametas (no caso, o pênis, que distribui espermatozoides). E pra justificar a violência que cometiam, eles argumentaram que naturalmente só havia dois tipos de pessoas, agrupadas com base no trabalho que faziam, nas posições durante o sexo, produção de gametas, etc (todas essas coisas foram fundidas e diferentemente enfatizadas ao longo do tempo, ajudando a mistificar a falsidade dessa distinção).

A noção de que certos tipos de órgãos são caminho pra certos tipos de comportamento, certos padrões econômicos, etc, é produto de um sistema social de opressão. Ela não é fundada em qualquer tipo de "fato biológico" porque antes de qualquer coisa esse "fato biológico" não existe. Um órgão não significa nada a não ser no contexto de uma "biologia" socialmente construída pra justificar o patriarcado. Literalmente. Eu trabalhei com biólogos (é, anon, se pá eu realmente já abri um livro de biologia algumas vezes na vida) e uma coisa que eu posso dizer definitivamente é que, como a maioria dos cientistas, eles não costumam pensar profundamente sobre como os tipos de perguntas que fazem e como a interpretação de dados que fazem estão estruturados no mundo. Na melhor da hipóteses, eles assistiram uma ou duas aulas mandatórias sobre bioética antes de se formar. Então quando eles vão interpretar dados matemáticos, eles fazem isso de uma forma que supõe que a verdadeira pergunta já foi respondida. Eles encontram dimorfismo não porque isso está nos dados que eles encontraram, mas porque isso foi presumido por conta de como eles fizeram a pergunta — se você perguntar "qual sexo é melhor em matemática?" você nunca vai achar evidência de que "sexo" é uma construção. É isso que muitas "verdades científicas" são, aliás — coisas que já haviam sido aceitas quando outras pessoas foram perguntar coisas mais complicadas, e que somente foram derrubadas, se é que foram, quando todas as respostas pra todas as perguntas complicadas revelaram algo que refutava o modelo anterior (o que inclusive está acontecendo agora com a noção de sexo — isso mesmo, até cientistas patriarcais estão se dando conta de como isso é a maior besteira, mesmo que tentando enrolar ao máximo e fazendo o maior estrago possível no caminho).

Mas o que podemos ver através de tudo isso é que o gênero precede o sexo. Gênero é uma forma de se organizar na esfera social, e dados biológicos são organizados em cima disso. Gênero, em outras palavras, é a categoria fundamental do sexo sob o patriarcado. Agora, alguém pode dizer que nós vivemos num mundo social, que nossas subjetividades são construídas socialmente, e portanto um órgão têm significado. Isso, claro, é verdade, mas é preciso reconhecer a natureza socialmente construída disso pra entender antes de tudo que não estamos lidando com um sistema rígido aqui. Não é simplesmente questão de dizer que, sob a realidade biológica, um certo cromossomo ou um certo órgão nos coloca em um certo local no patriarcado, e da mesma forma também não é simplesmente questão de dizer que, sob uma construção social, um certo cromossomo ou órgão nos coloca num certo local no patriarcado. Se esse alguém está ciente da complexidade envolvida em constituir socialmente o que é basicamente uma bolha de gosma (células) que produz ou não mais gosma (bebês, pessoas, etc) como pertencente a uma categoria binária e rígida, ele pode facilmente ver como essa construção social pode muitas vezes falhar e resultar numa pessoa que, por exemplo, tem um tipo de órgão, e no entanto tem sua identidade socialmente construída na categoria pra quem tem um tipo "diferente" (dentro das noções patriarcais de "diferença sexual") de órgão. De fato, só é possível falhar em reconhecer isso partindo do princípio desconfiado de assumir a priori que a pessoa em questão está enganando alguém ou sendo enganada, em vez de relatando a realidade tão bem quanto se pode relatá-la em linguagem. E o uso de inversões dessa linguagem pra relatar realidades mais próximas é um esforço pra redirecionar e ganhar controle sobre o biopoder e como ele foi decretado sobre nós. Isso não é mais ou menos legítimo do que a linguagem do patriarcado, exceto quando se encontra legitimidade em apoiar o patriarcado (argumentando que sexo é "real") ou em perturbar o patriarcado. 

Então o que é "sexo"? É a forma como pessoas falam de bolhas de gosma, e especificamente a forma como bolhas de gosma foram categorizadas em dois tipos, em pleno desafio à realidade, com o objetivo expresso de perpetuar o patriarcado.

Então, sim, sexo é biológico, no sentido de que os termos do sexo são codificados dentro do discurso da "biologia", que é em si uma construção no patriarcado.

Sexo é uma construção social. Essa é porra da minha palavra final sobre essa merda.

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