sábado, 28 de novembro de 2015

as recalcadas

Hoje, em algum lugar, eu li uma certa frase. Já a tinha lido muitas vezes. E toda vez que alguém solta essa frase e eu a leio, eu suspiro e um esquilo voador morre. Que frase é essa? Você descobre hoje, no globo repórter. Quero dizer, aqui, nesse blog mixuruca.

Antes, eu vou dizer o que eu sei sobre relacionamentos na nossa sociedade.

É esperado que a gente os tenha. Relacionamentos, quero dizer. Não somente com amigos e parentes, todo mundo espera e idealiza que, numa vida considerada boa, você tenha um relacionamento íntimo com alguém, e esse relacionamento vai se dar de uma certa maneira. Hell, as pessoas criam expectativas até sobre até onde vai o seu contato físico com a pessoa com quem você sem dúvida vai se relacionar monogamicamente pra sempre, afinal sexo é algo mandatório assim como a monogamia. Não querer transar é simplesmente um sintoma de algo anormal em você ou no seu relacionamento, e transar com mais de uma pessoa é nada menos que putaria, certo? Então aí está. A ideia pré-estabelecida de que "todo mundo quer um pouco de amor", seja lá o que se quer dizer por amor.

São coisas que eu sei sobre como funcionam relacionamentos na nossa sociedade. Posso discordar violentamente, mas recebo essas referências feito mísseis em praticamente todo lugar de todas as direções. O tipo ideal de contato humano que a gente deve ter já está determinado, só resta se adaptar. "Mas como?", alguém vai perguntar. Eu sei dessas coisas, mas também sei de mais uma: esse relacionamento não pode ser com qualquer pessoa. Há sempre uma pessoa ideal.

Se você não funciona nessa lógica, bem, tem algo de errado. Talvez você tenha algum problema. Ou talvez ninguém goste de você o suficiente. E claro, se é isso que está acontecendo, você precisa corrigir essa situação urgentemente. Afinal, se não atingiu seu objetivo, que definitivamente é ter um namorado ou algo similar, você falhou miseravelmente na sua missão de vida (céus, como poderá sobreviver a isso?). Você precisa descobrir como ser uma pessoa mais elegível pra ser a metade da laranja de alguém ou, pelo menos, mais fisicamente atraente. Você precisa descobrir como ser uma pessoa ideal. Pra começar, você tem que ser uma pessoa branca, e magra, e cis, e não ter deficiência. De preferência ter grana. E não pode ser puta. Quero dizer, todo mundo sabe que sexo: tem que ter, mas sexo demais: não tá podendo (a menos que você seja um cara cis hétero, de preferência branco). Você vai ouvir também que você tem que transar, e você vai ouvir que pra poder transar você precisa ter uma aparência específica ou um comportamento específico, e se você não tem essa aparência você vai ouvir que, sinto muito, mas o problema é todo seu, e se você tiver esse "problema", você vai ouvir que é uma pessoa tão inútil que não dá nem pra uma foda.

É claro que sempre vai aparecer um otário pra falar de preferência sexual como se ele vivesse numa bolha de vácuo e as concepções que ele tem do que constitui uma pessoa atraente tivessem se formado espontaneamente dentro desse vácuo, e assim é inadmissível questionar essas preferências ou abordá-las considerando instituições sociais como misoginia, racismo e transfobia, porque ele não vive em sociedade, e sim em sua bolha de vácuo. Mas como eu disse, ele é um otário. É esse tipo de gente otária que solta essa certa frase que eu li hoje.

Chega uma pessoa pra dar um call out no otário pelo fato de que ele romanticamente ou sexualmente rejeita pessoas com base em, por exemplo, orientação sexual ou raça, de forma que se essas pessoas fossem de outra raça ou outra orientação, não haveria problema em se relacionar com elas. O otário responde: "Escuta aqui, só porque você não gostou de levar um pé na bunda, não significa que eu seja racista ou bifóbico".

É lindo isso, não? Como uma pessoa pode apontar uma forma de perpetuar marginalização nos seus atos ou como seus conceitos foram influenciados por opressões contra minorias e você pode distorcer o que ela diz até que tudo pareça puro recalque, e estará desvirtuado o assunto, nada mais importa. Inclusive essa é uma das formas mais eficazes de silenciar alguém. Gente recalcada perde a simpatia rapidinho, especialmente se tudo gira em torno do fato de que ela quer você, ela precisa de você, mas nunca poderá ter, não é mesmo?

Então aqui está outro fato: quando alguém diz que recusar um relacionamento com uma pessoa por ela ser, por exemplo, bissexual é bifobia, não é o mesmo que dizer que se deveria ou deve ter um relacionamento com essa pessoa, não somente porque eu duvido que depois de saber que fulane é um otário bifóbico ela não tenha perdido o interesse, como também porque relacionar-se com alguém, ao contrário de tudo o que a gente ouve constantemente, não é mandatório. Além disso, bifobia não é algo que se possa remediar transando com uma pessoa bissexual. Na realidade, ficar com uma pessoa de determinado grupo minoritário, ou usar o fato de que você um dia já fez isso, só pra provar que você "não tem nada contra aquele grupo" é simplesmente a última coisa que vai funcionar. Quando você inevitavelmente deixar transparecer sua bifobia (ou qualquer outro tipo de viés marginalizador), você não vai conseguir sair dessa com um "mas eu já fiquei com uma pessoa bissexual".

Na realidade, questionar de alguma forma "preferências sexuais" tem a ver com o modo como determinados grupos sociais são vistos pela maioria da sociedade em que a gente vive, e como isso causa impacto na vida das pessoas em âmbitos que a princípio podem parecer puramente individuais, como relacionamentos afetivos e/ou sexuais, levando em conta que estes são considerados mandatórios e essenciais na vida de todo mundo mesmo que, não importa quão bullshit seu papo de "preferência" possa ser, ninguém possa ou deva te obrigar a se envolver com qualquer recalcada que seja, de fato (fica tranks).

Só que, no final das contas, sua "preferência sexual" deixa de ser puramente uma preferência quando se baseia em convenções sociais como "bissexuais traem mais", ou "sexo é biológico", ou "ser gordo é doença/é feio", ou "tem mulher pra pegar e mulher pra casar", ou "cabelo liso é mais bonito", ou "gente com deficiência não transa".

Tradução: o otário vai precisar de uma desculpa melhor.