quarta-feira, 6 de novembro de 2013

sobre "igualdade"

Vejo muita gente usar por aí uma expressão que passou a me incomodar bastante: "somos todos iguais". Vi no meu feed de notícias um compartilhamento sobre uma nova sigla a ser adotada no lugar de "LGBT*" que incluiria, entre outras letras, A para assexual, I para intersexo e Q para queer (o que achei redundante) e a proposição de uma nova sigla: GSD, que significaria Gender and Sexual Diversities (Diversidades Sexuais e de Gênero), que aliás achei demasiadamente genérica.

A pessoa que compartilhou esse post questionou a utilidade dessas siglas e sugeriu que, ao invés de rotular as pessoas todas, apenas promovêssemos "igualdade". Uma "igualdade verdadeira", provendo às pessoas os direitos sobre seus corpos, seus relacionamentos, suas vidas, seus nomes, a se vestir como querem, ser tratadas como preferem, a ter seu próprio espaço, sem que isso seja apontado como errado ou inapropriado. Prover às pessoas o direito de não serem tratadas como mercadorias, como lixo, porque "somos seres humanos e isso é o suficiente". Eu comentei nesse post expondo a minha posição e a pessoa disse que gostaria de publicar meu comentário, então irei reproduzir aqui o que eu disse, com algumas modificações.

A sigla LGBT*, na verdade, já não significa muita coisa, não porque as definições nela não sirvam de nada, mas porque esse movimento especificamente encontra-se vazio no sentido de que só serve aos homens cis homossexuais brancos, pois eles foram assimilados, incluídos na lógica de ascensão ao status quo, rifando as pessoas LBT*. É por isso que a gente chama de GGGG, fazendo chacota dessa assimilação. Mas o fato de essa sigla em específico ter perdido seu significado (já que o Movimento LGBT* tornou-se o Movimento Gay) não significa que a gente deva ignorar que existe uma diferença entre mulheres cis e trans*, pessoas trans* binárias e não-binárias, entre pessoas monossexuais, polissexuais e assexuais, entre pessoas monogâmicas e não-monogâmicas, entre pessoas brancas e não-brancas, etc, etc, etc. Quando se passa a tratar todas as pessoas como "iguais", se ignora as especificidades de cada uma delas e, portanto, as especificidades da opressão que cada classe sofre. Se todas as pessoas são iguais, nenhuma oprime, nenhuma é oprimida.

A pessoa que compartilhou o post, sendo uma mulher lésbica, sofre um tipo específico de misoginia intersecionada com homofobia — ela sofre lesbofobia, o que não acontece com uma mulher hétero. Existe uma especificidade na opressão patriarcal que ela sofre, e eu não posso ignorar isso na hora de lutar pra anular os privilégios masculinos e heterossexuais que são exercidos sobre ela, tratando a opressão que ela sofre como se fosse exatamente a mesma que uma mulher hétero sofre. Uma mulher trans* sofre misoginia intersecionada com transfobia (transmisoginia). Eu não posso ignorar a diferença existente entre as opressões sofridas por uma mulher cis hétero, uma mulher cis lésbica e uma mulher trans* (hétero ou não), porque existe uma especificidade em cada opressão que varia de acordo com a pessoa oprimida (assim como existe na opressão sofrida por mulheres negras, que interseciona misoginia e racismo, por exemplo). Se eu fizer isso, se eu ignorar essas peculiaridades, a minha luta não será eficaz e não estará ajudando a liberar a todas as pessoas (neste caso, todas as mulheres).



Pra combater a todas as opressões, nós precisamos nomeá-las e nomear seus agentes (nomear pessoas brancas, pessoas cis, homens, pessoas hétero, pessoas sem deficiência, pessoas ricas, etc), e é necessário saber sobre quem essas opressões recaem, e só sabemos disso através da identificação das pessoas como negras, indígenas, lésbicas, bissexuais, trans binárias, trans não-binárias, assexuais, etc, entendendo como e porquê cada opressão recai sobre cada classe, quais delas se intersecionam e de que modo, reconhecendo a fonte dessa opressão. Simplesmente tratar as pessoas como "iguais" não resolve. Na verdade, tratá-las como iguais atrapalha a luta contra a opressão, constrói falsas simetrias. Essas siglas, definições, nomes, rótulos, eles existem por uma questão de visibilidade e direção, de nomeação, porque nós não somos iguais. Nós somos diferentes, e essa é a questão. E ignorar nossas diferenças só perpetua a opressão (através do ato de ignorá-la) e mantém tudo como está.

Sobre o que foi citado no post: a quem é negado direitos sobre os próprios corpos, relacionamentos e vidas? A quem é negado o direito de vestir o que se quer, ser chamade pelo nome que se prefere? Isso é negado a homens, pessoas hétero, pessoas cis? Ou isso é negado a mulheres, pessoas sexodiversas e/ou pessoas trans*?

De quem é o espaço sendo invadido? É o espaço das pessoas brancas, das pessoas ricas, os espaços masculinos? Ou são os espaços negros e indígenas, os das pessoas pobres, os das mulheres?

Quem é considerado lixo por conta de seus corpos ou das pessoas com quem se relacionam? São as pessoas cis e hétero? Ou são as pessoas sexodiversas?

Quem é considerado inapropriado, inferior? Pessoas sem deficiência, pessoas ricas? Ou são as pessoas com deficiência? As pessoas pobres?

Somos seres humanos que se enquadram em diferentes classes que nos protegem ou nos tornam alvos de violência, na maioria das vezes simultaneamente. Como saber pelo que ou contra que(m) lutar se não se nomeia oprimido e opressor? Esse "agente do INMETRO", nomeado no post como "a sociedade", que nos fiscaliza, nos policia, e reduz a lixo as pessoas desviantes das normas sociais, ele tem nome. E é preciso nomeá-lo pra saber qual é o nosso alvo. Somos seres humanos, mas saber apenas disto não é suficiente para pôr um fim à opressão.

É necessário reconhecer o inimigo e sua fonte de poder.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

sobre o verdadeiro problema

Escrevo este post por sugestão de Oz, que considerou o que eu disse em uma conversa um relato expressivo.

Oz, uma pessoa de quem gosto bastante, me disse que havia sonhado comigo, e a conversa sobre esse sonho e como ele é análogo a algumas situações por quais passamos ou sentimentos que temos levou a este relato. Vou direto ao ponto.

No momento em que eu comecei a deliberar sobre a possibilidade de não ser heterossexual (que pra ter sinceridade eu não me lembro quando começou, mas sei que começou quando eu ainda tinha pouca idade), a ideia de ficar com mulheres me pareceu perfeitamente natural. Eu não me lembro de ter achado que era uma pessoa errada, absurda, incoerente, suja ou qualquer coisa similar. Eu podia gostar de mulheres e querer estar com uma, e isso, pra mim, era normal. E eu gostava de mulheres, as achava atraentes, e queria ficar com elas. Isso me pareceu plausível e legítimo. O problema sempre esteve nas pessoas lesbofóbicas e/ou heterossexistas¹ e em como eu teria problemas pra me adequar a elas (o que eu não queria fazer de modo algum) e lidar com o que elas pensam sobre a lesbianidade, como eu teria problemas para me livrar dessas pessoas que supõem que caiba a elas aceitar ou não o tipo de relacionamento que eu tenho com quem eu quero, como elas me cobrariam explicações sobre eu ter nascido ou não homossexual, e se sentiriam no direito de opinar a respeito.

Quando eu já ficava com mulheres, eu percebi que o que eu sentia por elas não anulava a possibilidade de eu continuar sentindo atração por pessoas de outros sexos. Eu era então alguém que não dava a mínima pro gênero ou genital das pessoas que me pareciam atraentes e isso me pareceu possível e natural, e eu nunca tive problemas pra encarar a minha bissexualidade. O problema foram as lésbicas cisgêneras que, tendo sido normatizadas por uma sociedade de mentalidade monossexista², me cobravam lesbianidade, por considerar a lesbianidade mais legítima, ou achar que eu estivesse num momento confuso da minha vida, tentando decidir o que eu escolheria, como se a bissexualidade fosse algo inexistente, impraticável. O problema foram os homens cisgêneros heterossexuais que claramente demonstravam intenções de se aproveitar dessa bissexualidade. O problema foram as pessoas cis e heterossexuais que riram de mim, pensando até que eu fosse uma pessoa ingênua e também indecisa, que eu estivesse numa fase que logo passaria. O problema foram todas as pessoas que olharam pra mim como se eu estivesse me desviando de um padrão (o que eu estava) que deveria ser seguido à risca, querendo que eu escolhesse logo de uma vez um único gênero pelo qual me atrair, porque bissexualidade é algo que a gente supostamente usa pra esconder a homossexualidade ou pra matar a curiosidade do que é ser homossexual sem tornar-se um (seja lá o que isso significa). O problema foram todas as pessoas que me perguntavam se eu tinha voltado a ser hétero quando eu resolvia ficar com um cara, ou se eu tinha decidido ser lésbica mais uma vez quando ficava com uma garota outra vez, como se a bissexualidade fosse algo impossível, ou de forma depreciativa, insinuando que eu estivesse deliberadamente trocando de orientação sexual a todo instante. Que me pediam para explicar como eu podia ser bissexual, porque isso não fazia sentido pra elas, e insinuando que eu não fosse uma pessoa fiel e confiável por isso, que pessoas como eu são promíscuas e incapazes de se manter num relacionamento monogâmico. O meu problema foram as pessoas monossexistas² e como elas tomam como legítimas apenas orientações monossexuais, e nunca a minha sexualidade em si ou a forma como eu a enxergava.



Quando eu notei que não era uma pessoa monogâmica (e eu notei isso enquanto ainda estava num relacionamento monogâmico), eu achei que fez sentido. Fez sentido pra mim não achar que o envolvimento de alguém com quem tenho uma relação com outra pessoa não ameaçasse essa relação e que eu não precisava deixar de sentir algo por alguém para sentir algo por outra pessoa. Um clique aconteceu na minha mente e eu vi que eu não tenho propriedade sobre outras pessoas  — nem quero ter — e que elas não a têm sobre mim — e eu não quero que elas tenham. Não tive problemas para compreender isso, para reconhecer que eu estava entrando num processo de racionalização e abandono da monogamia e dos sentimentos de posse exercidos e incitados em relações monogâmicas. O problema se concentra nas pessoas que afirmam com uma suposta propriedade que só é amor se for monogâmico, que só se pode amar "de verdade" apenas uma pessoa, e que o afeto só será completo se compartilhado exclusivamente com uma pessoa, e que tudo o que não se enquadra nisso é ilegítimo, mesmo que a monogamia traga consigo uma relação muito forte com a misoginia e o capitalismo e outras formas de opressão. Que isso tudo é apenas "uma grande putaria", e que eu estava numa de querer pegar todo mundo, só por diversão, mas que quando eu encontrasse alguém especial, eu voltaria ao normal. Que a não-monogamia não pode ser séria, e que pessoas que não são monogâmicas não sabem o que é amor ou afeto, que amam errado.




Quando eu entrei em contato com questões trans*, em decorrência do meu contato com o feminismo, eu estava num momento em que, após compreender o que define uma pessoa cisgênero³, eu não conseguia me dizer uma pessoa cis, porque isso não me parecia coerente com meu próprio ser; eu percebi que não realmente me enxergava como uma mulher, nem me sentia confortável com essa designação. Porém, por também não me identificar com um gênero binário (homem ou mulher), por exemplo, eu não me sentia no direito de me dizer trans*, pensando que se o fizesse estaria usurpando uma narrativa que não era minha e negando privilégios. Então, quando me deparei com a não-binaridade, tudo fez sentido pra mim. Fez sentido que eu não tivesse mais que me dizer cis, porque eu não sou cis. Fez sentido que os meus sentimentos constantes de deslocamento em tempo, espaço e corpo não fossem à toa, e foi bom entender os motivos de eu ter dificuldades em me dizer mulher. Eu finalmente havia encontrado o meu lugar, um lugar onde as coisas faziam sentido, onde meu próprio ser era bem mais compreensível pra mim que em qualquer outro, e eu não tive nenhum problema em enxergar a mim. O problema foram as pessoas cissexistas que me disseram que eu nasci tendo gênero e isso jamais poderia ser mudado, se apropriando da minha identidade. As pessoas que tentaram a todo custo usar da biologia pra me colonizar, usar meu DNA e meu corpo como pretexto para me enquadrar em algo que fosse mais aceitável para as normas de gênero, ou que tentaram desenvolver narrativas trans* a serem seguidas, a se tornarem padrão. O meu problema foram as pessoas binaristas (cis e trans*) que me disseram que "mesmo que você não seja cis, não existe isso se não ser homem nem mulher, você tem que ser um dos dois", ou que disseram que eu estava numa subcategoria (só pra não perder o hábito, sub porra nenhuma), como se narrativas trans* binárias fossem mais legítimas ou mais importantes que narrativas similares à minha. O problema é como outras pessoas insistem em ler meu corpo, errando meu gênero insistentemente, inclusive de propósito. O problema não está em como eu me vejo ou o lugar onde eu estou, mas nas pessoas que, tendo sido criadas sob a regência de normas cissexistas e binaristas, querem que eu me veja de outra forma, como se pudessem controlar a imagem que tenho de mim, e me jogar de volta onde eu estava, num lugar onde meu corpo, minha mente, meu ser não faziam sentido.




Eu, na maioria das vezes, me senti confortável comigo até que outras pessoas, se encarregando de perpetuar o que foi imposto e ensinado a elas, viessem até a mim questionar o que eu sou, tentar me desmentir ou dizer que eu não podia ou não devia ser assim.

As pessoas em geral, tendo crescido sob a regência de todas essas regras e entendido que todas as pessoas devem segui-las, muito comumente insinuam ou realmente acreditam que nós temos problemas com quem somos (leia-se: que nossas identidades são um problema). Que precisamos nos explicar pra elas — e quando digo explicar, isso implica, principalmente, em alterar aspectos das nossas identidades, e não para que sejam mais compreensíveis ou inteligíveis (entendíveis, como diria Juno), mas pra que sejam mais aceitáveis, o que significa estar em maior concordância com as normas pré-estabelecidas de como supostamente deveríamos ser. E ao ressaltar que foram pré-estabelecidas, é pra explicitar que foram estabelecidas anteriores a nós: decidiram por nós como deveríamos ser mesmo antes que tivéssemos nascido, ou que tivéssemos entendimento suficiente para sequer compreender o que fazia parte dessas regras que serviriam para nos controlar. As pessoas, tentando seguir o fluxo, seguir a ordem que, segundo dito desde sempre a todas as pessoas, é a correta, querem nos fazer falar para elas o que somos, não porque se preocupem com o que temos a dizer ou com nos compreender e respeitar, mas de forma que elas possam argumentar contra isso. Contra o nosso próprio ser. Porque nossos seres quebram as regras que elas estabeleceram, ou que elas seguem e se sentem confortáveis seguindo.

Não temos obrigação de seguir regras que nos negam para deixar outras pessoas confortáveis (mesmo quando uma pessoa que é também ferida por essas regras se sente confortável com uma delas, pois isso não significa que essa pessoa se beneficie também dela). Não somos o problema. Não temos obrigação de explicar quem somos para quem tem apenas a intenção de atacar-nos, porque nós não somos o problema. E se estamos a infringir regras, é porque desejamos arduamente que não mais existam regras de como devemos ser. Regras que não nos contemplam, que nos oprimem, que nos negam e inclusive matam. Nossas identidades, nossos corpos, orientações, decisões, desejos, nossas autoimagens, nossos desvios — nós: nós não somos o problema.

Ps: O intuito é esse, Oz, que a gente se conheça e se defina por nossas próprias palavras, e não por palavras alheias. Esse texto não é sobre como eu sei perfeitamente quem sou, mas sobre como estou aprendendo a (e exigindo que eu possa) reconhecer minha própria narrativa e defini-la, reconhecer meu meio, reconhecer a mim, sem que me atropelem, sem que me interrompam, sem que me calem — mesmo que eu esteja me reconhecendo só em pensamento, em silêncio. Eu exijo "o meu direito vital a ser um monstro, e que outros sejam o normal", e que eu possa reconhecer isso por mim, sem interferência.

¹Ser heterossexista (seguindo a heteronorma) é priorizar a heterosexualidade, tomá-la como a única orientação legítima, ou mais legítima que outras orientações.
²Monossexismo é priorizar, tomar como unicamente legítimas ou mais legítimas orientações que consistem na atração por apenas um gênero (heterossexualidade ou homossexualidade), gerando o apagamento das orientações não monossexuais (bi e pansexualidade).
³Cisgênero é uma pessoa que não é trans*, que possui uma identidade de gênero que concorda com o gênero que foi designado a ela ao nascer. Por exemplo, uma mulher que foi designada mulher ao nascer e se identifica como mulher.
Ser cissexista (seguindo a cisnorma) é dizer, entre outras coisas, que quem tem vagina é necessariamente mulher e quem tem pênis é necessariamente homem.
O fluxo que mantém as pessoas certas no poder e perpetua o status quo.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

sobre tabu (ou quase isso)

Eu publiquei este texto originalmente no Facebook e aqui fiz alterações. É sequencial ao anterior, também uma reflexão gerada através da ~polêmica~ do texto da Lola. Aí vai.

[TW: este post fala sobre abuso sexual]

Faço um pedido (pra algumas pessoas, é uma exigência): quando vocês quiserem tratar de um assunto relacionado estupro, ou se quiserem tratar de estupro em si, seja sob qualquer viés, falem sobre estupro. Sobre estupro. Não sobre "outros crimes". Sobre estupro. Eu faço esse pedido porque (pasmem) um crime sexual não deve ser comparado ou nivelado a outro tipo de crime, e outros crimes que violam pessoas não devem ser comparados ou nivelados entre si.

Eu nunca achei que tivesse que dizer o óbvio, mas abusar sexualmente de alguém é completamente diferente de xingar, assaltar e até de matar alguém, assim como essas outras violências são diferentes entre si, tendo cada uma uma motivação (no caso de assaltos, problemas gerados pelo capitalismo, por exemplo), e a violência praticada contra vítimas de misoginia possui particularidades e motivações específicas geradas pelo patriarcado.

Está a se falar muito sobre os direitos humanos de quem viola os direitos humanos alheios (estupradores, porque parece que algumas pessoas se esqueceram quem violou o que primeiro). Eu já falei em outro post sobre como "não saber" o que é estupro não atenua um estupro e sobre como os acontecimentos na vida de qualquer agressor são completamente irrelevantes no sentido de que não justificam a violência que praticaram contra outras pessoas.

Racionalmente, se eu acho que toda pessoa que estupra deve ser torturada até a morte? Não, muito menos por determinação estatal. Não sinto pena delas quando uma vítima que se vinga de seu abusador, o que é uma questão estritamente pessoal, e podem dizer que eu sou um ser humano vil (agradeço, tá?), só que isso não é relevante neste panorama. A questão é que eu posso querer matar meu agressor, não se deve questionar a legitimidade de sentimento nenhum de vítima nenhuma.

Essa indiferença não se aplica a agir com opressão sobre o estuprador quando ele é marginalizado de alguma forma (como quando, por exemplo, se é racista com um estuprador negro ou capacitista com um estuprador com deficiência), nem se aplica à forma como estupradores de classes marginalizadas são muito mais comumente penalizados que estupradores playboys branquelos mackenzistas.

Não sou uma pessoa burra nem simplesmente irracional: eu sei que pessoas podem conseguir reabilitação e acho que todo mundo deveria saber disso. Quem defende a pena de morte, por exemplo, não tem muitos motivos para tal a não ser o fato de ser extremamente reaça e "desacreditar" da reabilitação, como vejo sendo repetido por aí incansavelmente, porque certas pessoas simplesmente "não têm conserto". No entanto, quando foi que, pelo menos no Brasil, se tentou reabilitação de fato? A minha posição racional, achando que (pessoal e emocionalmente) não me atingiria em nada se eu soubesse que um estuprador foi morto de forma cruel (o que não se aplica, como já dito, a quando isso envolve perpetuar outras formas de opressão), é de que alguém (dentro das atuais circunstâncias e do nosso modelo político) que cometeu um crime sexual deve ser julgado (de preferência por um sistema não retrógrado e misógino como o nosso), condenado, devidamente punido e, se possível, reabilitado (e digo isso à parte das considerações a serem feitas sobre os nossos ~maravilhosos e eficientes~ sistemas judiciário e penitenciário). Isso é razoável. Isso, pelo menos, deveria ser possível.



Num texto que li há um tempo no meu feed de notícias do Facebook, foi dito que o discurso que pede a morte do estuprador "de criancinhas e 'mulheres de bem'" também é o que criminaliza a mulher de minissaia, cujo estupro é colocado em dúvida. Bem, o discurso que criminaliza a mulher de minissaia é aquele que consiste em machismo e misoginia.

Algo a ser considerado é a discrepância entre o número de estupros cometidos, o número de estupradores denunciados, o de estupradores punidos pela lei estatal e o número de estupradores, digamos, punidos pelo furor popular, sendo estes últimos o foco do texto citado acima. Consideremos que os últimos configuram o menor número.

São geralmente torturados e assassinados os estupradores das "mulheres de bem", aquelas de família, e nesses casos, essa vingança praticada em defesa dessa "mulher de bem" provém claramente de um discurso machista no sentido de que serão homens cis* (o pai, o irmão, o marido ou namorado) a defender a honra da vítima (a mulher de bem, tida como propriedade de seus defensores). Serão homens cis os justiceiros e vingadores da mulher que atende às expectativas sociais estipuladas por... homens cis. Será defendida a mulher considerada perfeita pelo patriarcado (lembrando que o pai enfurecido que mata o estuprador da filha pode ser o mesmo homem que considera obrigação de sua mulher fazer sexo com ele e que a mulher perfeita para o patriarcado deve ser cis, ou ao menos passar como cis).




Partindo desse princípio, o número de estupradores torturados (e quetais) será ínfimo, e o será exatamente por conta do discurso que criminaliza a mulher apontada pelo patriarcado como "vadia". Pergunte pra um guerreiro da real e ele vai te assegurar que mulheres de família estão em ameaça de extinção (isso merece um brinde, sim ou claro?). Brincadeira, nunca pergunte nada a um guerreiro da real, mas é procedente a informação de que as mulheres vão, ao longo do tempo, adquirindo mais autonomia (válido lembrar que homens odeiam as mulheres em geral, mas odeiam mais ainda uma mulher dona de si), e de acordo com os preceitos patriarcais em que se baseiam a sociedade em que vivemos, um ato sexual praticado sem o consentimento de uma mulher que é considerada vadia não é estupro — ela pediu, mereceu; não há quem olhe por ela, e seu abusador não será visto como abusador, principalmente porque a sociedade num geral não sabe o que é estupro. Point: eu não estou apontando a pequenez do número de estupradores assassinados para dizer que assassiná-los é necessariamente correto ou não; mais acima, apontei especialmente o que eu acho condenável quando se trata de punir estupradores.

No mesmo texto citado acima, se dizia: "se queremos que as pessoas vejam o sexo como algo natural, agressões de cunho sexual precisam de uma nova análise".

Eu concordo que o caráter "sacro" que foi dado ao sexo e tudo o que a ele se relaciona deve ser questionado. Esse caráter, por exemplo, fundamenta a reação citada anteriormente, baseada num discurso machista. A questão é que esse caráter "sacro", não por coincidência, só existe pra controlar a sexualidade da mulher e de pessoas que não são cis e/ou hétero. A visão de que o sexo é algo sagrado, mas não pro homem cis hétero, porque homem cis nenhum tem a castidade imposta a ele como uma vítima de misoginia tem, contribui para que as pessoas continuem imaginando em suas cabecinhas machistas que estupro acontece somente naquela situação em que uma menininha frágil e recatada encontra um monstro psicopata que a irá violar de forma extremamente violenta, pra que elas continuem achando que existe diferença entre estupro e sexo sem consentimento, pra que as pessoas continuem achando que o estupro de mulheres que não se submetem a imposições patriarcais não é estupro. Mas antes de mais nada, digo que considerei essa frase, no mínimo, muito infeliz. Considero que exista uma linha que delimita a diferença (e a enorme distância) entre sexo e estupro, e essa linha deve estar muito bem delineada, porque estupro não é sexo e existem inúmeras formas, circunstâncias e agravantes para estupro.

Eu não tenho a capacidade de relacionar o sexo deixando de "ser tabu" com a visão de crimes sexuais da forma como isso foi colocado no texto em questão, especialmente porque o tabu só existe quando a sexualidade em questão é feminina: como se as pessoas fossem encarar um estupro da mesma forma que encaram outros crimes hediondos, como sequestro ou latrocínio. Eu não consigo comparar sequestro com latrocínio, nem latrocínio com estupro, e nem estupro com sequestro, muito menos a forma como cada vítima lida com a violência sofrida, seja ela qual for — acho que todos esses crimes são muito singulares e distintos, porque cada um deles acontece por uma motivação diferente. E não tenho a capacidade de fazer essa relação especificamente porque crime sexual não é sinônimo de ato sexual. Eu realmente não vejo como as pessoas se indignariam menos com crimes sexuais caso o sexo fosse visto de forma mais natural porque, ainda que natural, o sexo não perderia seu caráter íntimo e pessoal e autonomia das pessoas (mais especificamente de mulheres) não deixaria de ser algo inviolável. Não deveria ser o contrário? Afinal, é por isso que lutamos, não? Pra que possamos transar se quisermos, quando nós quisermos e com quem nós quisermos sem que nos encham a porra do saco.

Penso que o sexo deixar de ser algo "sagrado" é algo que está necessariamente ligado ao combate da misoginia, de homo, lesbo, bi e transfobia, entre outras coisas. A partir disso, dissolve-se o conceito de "mulher de bem", já que uma mulher ou outra pessoa trans casta não será mais considerada correta a ponto de ser mais merecedora de direitos, de respeito e de autonomia do que outras por ter realizado a vontade dos homens cis, porque pouco importará se ela transa, quantas vezes, com quem, whatever, e se não existem mulheres de bem, não existe o conceito de vadia, e ser vadia não poderá mais ser usado como suposta justificativa para estupro. Então todas as mulheres e outras pessoas trans terão sua autonomia defendida. Será consenso que deve-se haver consentimento, e melhor: em caso de abuso, o silêncio poderá ser quebrado com mais facilidade. Porque o sexo será natural, e não algo que se possa ter das pessoas sem a permissão delas. Por que raios as pessoas passariam a achar que estupro é menos grave? O intuito não é fazer as pessoas acharem o contrário, fazê-las enxergar que estupro é grave?

Sendo assim, creio que a frase destacada seria muito mais coerente, sensível e menos infeliz se fosse algo parecido com: "Se queremos que as pessoas saibam o que é estupro e que ele não é algo natural ou aceitável, o sexo, e como lidamos com ele numa sociedade patriarcal, precisa de uma nova análise".

Algumas pessoas consideraram que, quando a Lola mencionava perdão em seu maldito post, ela falava de perdão social. Eu não acho que perdão seja cabível de forma alguma nesse tema porque vejo como algo simplesmente... pessoal, e o conceito de "perdão social" não me entra na cabeça. Se eu conheço uma pessoa e descubro que ela passou anos na cadeia cumprindo pena por estupro, será uma questão muito pessoal para mim decidir se devo me afastar dessa pessoa ou não e se acredito na reabilitação dela ou não. O que se define por perdão social, nesse caso, eu substituiria pelo cumprimento da pena pelo crime cometido, e que cada pessoa faça o que bem entender com o próprio perdão, inclusive a vítima do crime (eu já disse antes que nenhuma vítima tem obrigação de perdoar alguém que comete uma violência contra ela, right?).

Sobre o suposto "punitivismo excessivo" (oi?) de feministas que a Lola cita, creio que não cabe ao feminismo deliberar sobre o perdão para estupradores, porque não é deles que se trata o movimento feminista. Ele se trata de apoio e empoderamento das vítimas de misoginia e transfobia, da exigência e reivindicação de direitos que são negados a essas pessoas e do combate das formas de opressão que dialogam com o patriarcado, cis-heterossexismo, racismo, gordofobia e tudo o que tem de merda nessa joça outras. Não é papel do feminismo preocupar-se com perdão, nem de longe. Além disso, coisas como castração química nunca foram tratadas como parte da pauta feminista. Eu só vou repetir que: sentir ódio de seu seu estuprador não implica em ser uma pessoa reacionária.

E peço novamente: foquem na coisa certa. Foquem nas milhares de vítimas culpabilizadas que tiveram suas vidas, no mínimo, abaladas e que, de tão policiadas, nem denúncia são capazes de fazer. Eu acho que se está gastando tempo demais pensando em pessoas que nem pagando por seus crimes estão, enquanto suas vítimas são obrigadas a fazê-lo — nós já sabemos a enorme diferença entre o número de estupros e o número de estupradores condenados. Por favor, parem de citar outros crimes enquanto se trata de estupro insinuando equiparações entre eles. Tenham tato e sensibilidade para com todas as vítimas.

Força pra todes nós!

*pessoa que é do gênero que lhe foi designado em seu nascimento; alguém que não é trans.

sobre inocência

Escrevi o texto a seguir há algumas semanas por conta de uma reflexão gerada por causa de um texto da Lola. Ele não segue estritamente o que foi abordado no texto dela, mas dialoga com a temática.

[TW: este é um post que fala sobre abuso sexual]

Eu sei que há um grande número de pessoas que possuem uma concepção específica de estupro que geralmente se restringe a imaginar que há o uso de violência física para que ele aconteça. Essas pessoas muito comumente interpretam estupro como, basicamente, penetração forçada. O que é engraçado (não), porque existem muitas formas que são, digamos, sutis de estupro, que acontecem por motivações misóginas diferentes, perpetrados contra vítimas diferentes. Nos abusos que eu sofri durante a vida não houve penetração forçada, e eu não os considero menos graves por isso, nem vejo como deixam de ser abusos sexuais (e você se surpreenderia com o número de mulheres e outras pessoas trans que já foram vítimas de abuso).

Existe uma infinidade de pessoas que não sabem o que é estupro. Existem até mesmo pessoas que foram abusadas e não perceberam isso. Existe uma infinidade de homens que já estupraram e "não sabem". Mas uma coisa deve ficar clara: este "não saber" tem absolutamente nada a ver com inocência ou ingenuidade por parte deles.

Quando um homem "não sabe" que transar com a namorada dele quando ela está bêbada é estupro, ele não é apenas um cara ingênuo. Ele está simplesmente assumindo (conscientemente ou não) que não há necessidade de se adquirir consentimento explícito da namorada dele para transar com ela. Ele está a tratá-la como se tivesse passe livre ao corpo dela em tempo integral por ser seu namorado, ou seja, como algo que é de propriedade dele. Ele não é ingênuo por "não saber" que a está estuprando — nem de longe, acredite — e o que ele fez não deixa de ser estupro.




Se um homem trata a satisfação de seu desejo sexual como uma obrigação da esposa e essa mulher só cumpre essa suposta obrigação sob qualquer tipo de pressão, coação, ameaça ou chantagem (e mesmo que eu considere óbvio, acho válido lembrar que usar "a vontade de Deus" como pretexto pra transar é coagir uma pessoa a transar), quando há ato sexual, é estupro. Esse homem pode "não saber" que isso é estupro, ele pode realmente achar que é obrigação da mulher dele transar com ele. Isso não faz dele uma pessoa inocente. Porque ele ignora (intencionalmente ou não) que essa mulher tenha o direito de se negar a transar, ou simplesmente ignora (intencionalmente ou não) que ela tenha direitos, nega esses direitos, assim como a sociedade nega e vem negando desde... sempre?


Um homem "não saber" que está estuprando alguém é completamente diferente de ser inocente. Porque este "não saber" implica numa série de coisas (inclusive no fato de muitos homens terem uma concepção deturpada e extremamente tendenciosa do que é estupro). Basicamente, um homem "não sabe" que é estupro se ele vê outras pessoas (mais especificamente mulheres e outras pessoas vítimas de misoginia) como inferiores, detentoras de menos direitos, como propriedade ou acha elas devem algo a ele.


A misoginia gritante nas percepções citadas acima podem ser invisíveis para esse homem ou não, e podem se resumir, basicamente, ao fato de que ele é machista e/ou misógino, simplesmente porque hello, olhe à sua volta e veja como a nossa sociedade cria os homens cis.

Nós sabemos que não é como se todo estuprador tivesse transtornos mentais, de forma alguma (mesmo que muita gente trate abusos sexuais através dessa perspectiva misógina e capacitista, como algo que só "monstros psicopatas" fossem capazes de fazer). Muitos homens estupram porque acham que tem quem mereça sofrer estupro e dizem isso explicitamente. Outros homens sabem que estão estuprando e negam que isso seja errado ou que tenham estuprado.

Os homens que supostamente não sabem o que é estupro, assim como todos os outros, nasceram numa cultura misógina que os ensinou que mulheres são pessoas que estão habitando o planeta pra atender aos desejos deles, quer eles conscientemente pensem assim, quer isso esteja sutilmente enraizado em suas mentalidades por conta da educação que receberam. Eles não pediram pra aprender dessa forma. Isso os isenta de serem machistas e misóginos? Não. Não foram eles que inventaram essa ideia de que mulher é depósito de porra. Isso os isenta de tratá-las como tal? Não. Eles não sabiam que o consentimento deve ser explícito sempre porque ninguém explicou o óbvio. Isso os isenta de um estupro cometido por eles? NÃO.

Se o cara "não sabe" o que é estupro, se ele "não sabe" o que configura consentimento, ele já é uma pessoa perigosa. Porque se ele tem idade suficiente pra transar, mas não sabe como respeitar a vontade alheia, ele é uma pessoa escrota que provavelmente vai ultrapassar os limites que respeitam a autonomia de outra pessoa — vai estuprar. Depois de estuprar alguém, um belo dia descobrir o que configura estupro e quão horrível é o que ele fez não é mais que sua obrigação (na verdade, a obrigação dele é perceber isso antes de estuprar). E não, ele não é inocente por ter descoberto a verdade. Não, seu arrependimento não muda em nada o que ele fez. Não, seu arrependimento não me obriga a perdoar. Não, o fato de eu não perdoar não faz de mim uma pessoa reacionária.

"Não saber" o que é estupro já é uma concepção violenta — a de que se tem direito ao corpo alheio independente da vontade das pessoas donas desses corpos. Não se tem. Assumir isso, mesmo que de forma inconsciente, é e absurdamente asqueroso e violento. E não ter a consciência dessa violência não isenta nenhuma atitude violenta perpetrada contra outra pessoa.

Eu considero perfeitamente possível que pessoas possam se regenerar, mas considero abuso sexual algo delicado (pra dizer o mínimo) demais para ser debatido desta forma, com foco em estupradores e em sua possibilidade de regeneração. Não porque corrigir essa educação misógina dada a eles não seja importante — ao contrário, esse é um objetivo. Mas porque dor que acompanha uma vítima de abuso pode durar talvez por um período de uma vida inteira, e são essas vítimas de abuso que, além de terem passado por isso, não recebem o devido apoio, isso quando não são acusadas de mentirosas ou de terem causado o próprio abuso. Elas não têm obrigação de perdoar seus abusadores, assim como ninguém tem (apesar de poderem, se de fato quiserem, mas isso definitivamente não é uma obrigação), e as circunstâncias da vida pessoal de quem abusa nunca poderão ser uma justificativa pra um abuso cometido, porque não existe — não existe mesmo — nenhuma justificativa para estupro.

 Se for mesmo necessário citar outra obviedade: se arrepender e pedir desculpas não cura a dor de quem sofreu a violência. Um estupro não é um erro que se possa remediar pedindo perdão. Os traumas que uma vítima de abuso sofreu (e sofre) não somem quando o estuprador se arrepende. E estupradores não precisam desse apoio — não pela suposta dor e culpa que sentem por terem estuprado, e não quando nossa sociedade já opera pra defendê-los a todo custo. Vide: todas as vezes que uma vítima de abuso que fez uma denúncia foi acusada de "arruinar" o futuro de seu abusador, ou abusadores.

O fato é que o "futuro" de estupradores, e os sentimentos deles, precisam parar de ser tratados como mais importantes do que o estrago que eles causaram nas vidas de suas vítimas.