quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Tony Sawicki e Representatividade Trans

Esta é a tradução da junção de quatro postagens originalmente publicadas por Dawson sobre o personagem Tony da série mais sensacional de todos os tempos Orphan Black. Contém spoilers.


Várias pessoas disseram ter se sentido desconfortáveis com a dinâmica Felix/Tony (Felony [em inglês, "felonia", "crime grave"]... Heeey, esse é melhor nome de ship de todos!). Eu compreendo perfeitamente, e vocês são absolutamente livres pra se sentir como estão se sentindo. Eu não acho nem um pouco que as pessoas que escreveram a série estavam pensando em qualquer coisa além de testar limites com essa interação, então tenho praticamente certeza de que ela foi criada pra nos fazer contrair um pouco. O Tony poderia facilmente não ter qualquer interesse pelo Felix. Mas eu fiquei feliz que isso aconteceu, porque nos trouxe coisas que eu considero muito importantes:


Questões de Identidade


Nós passamos a série inteira vendo (e não apenas ouvindo falar sobre) identidade. Eu amo trabalhos criativos que propõem perguntas e essa série é especialista nisso. Então aqui vai a pergunta, #cloneclub: se "there's only one of me" ["só há uma de mim", como disse Sarah Manning no 7º episódio da 1ª temporada], por que nos incomodamos com a ideia de o Tony e o Felix ficando um com o outro? Eles são duas pessoas diferentes. Não têm qualquer parentesco. Então o que é que tem em Felony que nos causa constrangimento?

As pessoas que escreveram a série nos deram uma boa quantidade de falas pra começar a sacar isso. "Você é igualzinho à minha irmã", "você não tem nada que eu já não tenha visto antes", "ele tem todos os seus defeitos". Essas falas são expressões do desconforto do próprio Felix com o interesse de Tony e (ouso dizer) do interesse dele no Tony. Essa série... Essa série, cara. É tudo sobre mostrar que identidade tem, na verdade, muito pouco a ver com a nossa aparência, que somos mais que a nossa genética. Ela é um fator, mas não o fator. Porém a série nos lembra de novo e de novo que nós temos dificuldade pra acreditar nisso. Que a nossa aparência diz muito sobre quem somos.

E os problemas do Felix com relação aos próprios sentimentos e as investidas do Tony são realmente sobre nos lembrar de que mesmo o Felix (e mesmo nós), que fez parte do emaranhado do clone club desde o primeiro dia, tem dificuldade de separar o Tony da Sarah, de vê-lo como um indivíduo totalmente à parte e completo que tem nada a ver com a irmã dele. Mas ele pode sentir isso. E essa é uma declaração poderosa a respeito de identidade.

Um Homem Trans Gay ou Bi



Ok, eu nem sequer tenho certeza de que acabei mesmo de ver um homem trans numa série de TV (e acredite, essa é uma coisa da qual eu lembraria). Mas não para por aí: gênero e sexualidade são duas árvores que crescem uma ao lado da outra, suas raízes embaraçadas, empurrando uma à outra nessa ou naquela direção, elas crescem dentro de você. E Orphan Black foi tipo: "Yup, não vamos fingir que essas coisas não estão claras nem são simples".

Mostrar um homem trans na televisão já é maravilhoso, mas mostrar um homem trans bi ou gay? Simplesmente fodástico. E além de tudo, ter o Felix tratando ele da forma como ele trata. Eu tenho quase certeza (foi meio murmurado) que o Fe num determinado momento diz: "Your bit of T didn't schock me either, Tony" ["A sua testosterona também não me chocou, Tony"]. Todas as hesitações do Felix giram em torno de ele ser um clone. Ele nem pisca ao ver que o Tony é trans. Quão foda e lindo é isso? Na TV, ter esse poderoso personagem gay demonstrar interesse por um cara trans e achar nada demais? Isso é ótimo.


Material Para A Trama do Felix

Eu tô curioso demais pra saber o que vai acontecer com o Tony, menos pelo próprio Tony (apesar de que, sim, é incrível ter representatividade na TV) e mais por como ele pode influenciar e impactar a história do Felix. Eu só consigo imaginar a confusão turbulenta na cabeça do Felix agora e não posso esperar pra ver mais.


Normalizando Homens Trans Em Orphan Black


Com personagens trans há toda uma marca sobre eles que tem sempre, sempre me deixado louco: nada sobre eles parece ser considerado "normal". Claro, dada nossa cultura, introduzir um personagem trans num programa de TV significa responder algumas perguntas sobre como é ser trans, sobre como "tudo isso" funciona, mas na minha experiência isso é tudo o que é representado sobre pessoas trans. Outras histórias a) não são tão bem contadas, muita coisa fica faltando quando o foco da história é a transexualidade e b) acaba parecendo que todas as histórias pelas quais passamos são sobre ser trans.

Aí Orphan Black apresenta esse tal personagem Tony e ele subverte tudo isso, enquanto provê um pano de fundo e um veículo pra mostrar elementos importantes sobre ser trans. A história dele não é sobre isso, mas certamente serve de veículo pra falar a respeito. Normalizando o dia a dia de uma pessoa trans essa série simplesmente acabou com meu coração. Eu não sabia que precisava disso até ver. As coisas que me surpreenderam:



1. Binding e packing: Vemos as duas coisas na tela mais de uma vez. Não são feitos comentários nem observações a respeito (uma cena é filmada de forma que a gente possa ver que ele está fazendo packing). São simplesmente partes da vida do Tony. Isso dá a pessoas cis um vislumbre do dia a dia de pessoas trans sem fazer disso o centro da história. Normalizam essas coisas de uma forma que fazer alvoroço sobre elas nunca poderia.

2. Testosterona: Eu literalmente nunca tinha visto isso na TV. Nenhuma vez. E esse é algo regular na vida da maioria dos homens trans. Está incorporado em quem a maioria de nós é. A fala do Tony, "toda semana, não importa o quê", diz muito num pequeno pedaço de diálogo sobre realidade incorporada à transexualidade dele. Essa é a vida dele. Sem falha. Interessante é que o Tony usa isso pra arrancar uma reação do Felix, ele cutuca e testa e possivelmente está tentando descobrir se o Felix vai tratá-lo como uma aberração (eu sei que eu frequentemente recebi essa reação a algo tão normal pra mim de pessoas que não têm familiaridade com pessoas trans, e se é pra ser honesto, eu já testei algumas pessoas dessa mesma forma). O que nos leva ao próximo ponto.

 3. Testosterona, parte II: eu não tenho 100% de certeza de que essa é a fala, porque tem muito barulho de fundo (e lábios no meio do caminho) quando o Felix diz isso, mas vou seguir com essa mesmo porque é o que eu escutei: "Sua testosterona também não me choca, Tony". Véi... Véééi. Felix, você é meu herói. Ele recusa morder a isca na cara dura, recusa ser provocado pra tratar o Tony como sendo qualquer outra coisa além do que ele é: só outro cara de quem ele precisa extrair informação. Pessoas cis tratando pessoas trans de acordo com o gênero delas sem questionar? Sim, por favor, me dá mais.




[Observação: uma fonte muito, muito confiável me confirmou que eu entendi a frase dita pelo Felix de forma errada. O Felix diz: "Fluidez também não me choca, Tony", o que cabe perfeitamente no que eu estou dizendo, então não vou mudar.]


"Só mais uma variação na pele da minha irmã"



As pessoas podem se sentir como for a respeito de uma pessoa cis interpretando uma pessoa trans, mas eu quero dizer sem a menor dúvida que eu estou muito, muito feliz por eles não terem ido atrás de outra pessoa que não a Tatiana pra fazer o Tony. Dá pra imaginar eles usando outra pessoa (mesmo uma pessoa trans que se parece com ela)? Isso acabaria comigo. Isso me deixaria à parte como uma aberração, como diferente de todo mundo, ainda que eles pudessem certamente encontrar alguém parecido com a Tatiana ao invés de fazê-la interpretar todo mundo. Mas eles não fizeram isso. E se eles tivessem feito uma exceção só pro Tony, ia ficar parecendo que pessoas trans simplesmente não fazem parte da humanidade coletiva que a série representa. O Tony é uma variação tão válida quanto, um resultado tão provável quanto qualquer outro entre os clones. Apenas mais uma variação, e uma parte tão válida e valorizada do Clone Club quanto qualquer um dos clones cis. Eu não tenho palavras pra dizer o quanto isso é importante pra mim.


Só mais um clone

 
Finalmente, o Tony tinha um papel. Ele tinha uma história pra contar e uma tarefa que poderia facilmente ter sido atribuída a um clone cis, mas não foi. Mesmo a conversa surpresa entre o Art e o Felix é incrivelmente curta e direta. Sim, ele é um clone trans. Ele é um clone como todos os outros. Vamos em frente, temos uma história pra contar. Ele levou a história do Felix imensamente adiante (deusa, eu quero tanto ver o desenrolar do Felix lidando com o interesse dele pelo Tony), ele trouxe informações importantes ao Clone Club, e foi guardado pra estar disponível no futuro caso seja necessário avançar nessa história. Ele foi necessário, e qualquer coisa relacionada à transexualidade dele era informação de segundo plano, um lindo vislumbre da vida de uma pessoa trans da vida real que pode ajudar a educar algumas pessoas, sem dar a impressão de que é só pra isso que servem pessoas trans. Em suma, ele é como qualquer outro personagem que você poderia ver na televisão com o intuito de contar uma história, que por acaso é trans. E isso, meus amigos, é lindo.


Vocalizando Minha Vida: Falas Importantes Ditas Por ou Sobre Tony Sawicki

Há algumas palavras realmente importantes e incríveis nesse episódio que eu gostaria de apontar e falar a respeito:

"Tony, o que você está fazendo aqui é muito mais complicado que sexo ou gênero" — Felix

Apenas... Obrigado, Orphan Black, por dizer isso. Sexo e gênero são complicados. Obrigado por reconhecer isso.

Que jeito de ampliar a qualidade da série de uma forma que provavelmente vai ressoar exclusivamente na população LGBT. Sério, pra pessoas trans (ou pelo menos pra mim), se entender e transicionar é uma das coisas mais difíceis e assustadoras que você pode fazer. Apresentar a complexidade do mundo dos clones em contraponto a com que o Tony teve que lidar em termos de gênero e sexualidade? Lindo. E mais pra frente fica mais, continue comigo.  

 "Meu amigo Sammy tava pouco se fodendo pro que tava acontecendo entre as minhas pernas, ele apenas em enxergava" — Tony
.

 Um salve pra todo amigo que simplesmente não se importava com minha transexualidade. Pra todo mundo que tava simplesmente tipo "Cara, você é foda. Por que eu me importaria com o que tá rolando lá embaixo?". Pro Sammy, que tá morto, e tava pouco se fodendo. Pra todo mundo que simplesmente me enxergou. Obrigado. Até que você experimente como é não ser visto como quem você é... Você nunca vai entender o que significa ter pessoas que apenas. enxergam. você.

"Não é a nossa crise de identidade usual" — Sarah

Esse faz referência ao primeiro quote... A complexidade da coisa com que eles estão lidando é mitigada pelo que o Tony passou no processo de encontrar a si mesmo. E isso é maravilhoso.


 "Eu trabalhei isso tudo há muito tempo" — Tony


Suas escritoras maravilhosas. Sua atriz maravilhosa. Sua série maravilhosa. Vocês pegaram a experiência mais difícil e complicada pela qual a maioria das pessoas trans passa e fizeram dela algo incrivelmente positivo. Por que quer saber? É mesmo. 10 anos depois, minha transição não é mais horror e medo e tristeza... É força, e aço, e a compreensão de quem eu sou. É o fogo no qual eu fui forjado e eu não me arrependo nem por um instante. Eu não lamento ou choro ou tenho dificuldade (eu tenho dificuldade, às vezes, com relação ao meu corpo... Mas não à minha transição). É quem eu sou, e um pedaço profundamente incorporado a mim mesmo e que me trouxe muitas coisas maravilhosas, não desimportante é a necessidade de descobrir quem eu sou, quem eu realmente sou. Eu não posso agradecer a essa série o suficiente por colocar isso lá fora, no mundo.


"Eu não sabia que Tony Sawicki era um personagem que eu precisava"

É engraçado ver quantas vezes ao longo da leitura eu vi essa frase se repetir na boca de tantas pessoas trans. Eu a disse pra mim mesmo, assim que o oitavo episódio da segunda temporada foi ao ar. E eu me lembro de sentir, vendo ao episódio, algo estranho ao, de repente, de alguma forma, perceber que um lugar que estava vazio em mim foi inesperadamente preenchido... Um lugar que eu nem sabia que existia. Eu fiquei pensando sobre isso, e o que é que tem o Tony que foi tão surpreendentemente comovente pra pessoas trans? Eu ainda não tenho certeza de que dei conta de tudo, mas tenho algumas ideias:

A Humanidade do Tony: uma das coisas mais importantes sobre o Tony pra mim, pessoalmente, é quão humanamente imperfeito ele é. O Tony é descarado, agressivo, e ocasionalmente frustrante. Ele pode ser bem exagerado, e meio que uma caricatura da masculinidade (não diferente do Felix, que pode ser percebido como uma caricatura de homens gays). Ele, ridiculamente gato com seus mullets e botas, gloriosamente e imperfeitamente humano. Pra uma comunidade que geralmente é reduzida a uma única faceta de sua humanidade (a transexualidade), esse foi um verdadeiro presente. Nós somos todos seres humanos multi-facetados com o que há de bom e ruim espreitando dentro de nós. Inclusive pessoas trans. E o Tony foi real assim.


A Autoconfiança do Tony: essa é uma das grandes pra mim. Eu estou nada menos que devastadoramente cansado do garoto trans lutando com sua identidade, tentando encontrar seu lugar no meio do mundo cisgênero que é geralmente representado na televisão (tipicamente se encontrando no meio da comunidade lésbica). Essas histórias são reais, e são importantes também, mas são apenas uma parte da vida de um homem trans. Há tanto mais. Há o auto-entendimento endurecido nas chamas de lutas e acusações. Há confiança do tipo que você adquire na ponta de chutes raivosos tanto de pessoas cis hétero quando de pessoas sexodiversas. Há dúvida e crescimento e eventualmente aceitação. Eu escrevi uma vez sobre quão raramente vemos como homens trans sobrevivem, que belos homens nos tornamos. E o Tony é uma representação disso.

A Complexidade do Tony:  o Tony não é "o clone trans" (uma expressão que me faz encolher quando a vejo na mídia), ele não é isso. Há tanta coisa nele. Ele é trans, sim, e ele também é gay ou bi ou pan (enfim, em termos de sexualidade, ele não é hétero), ele passou por tempos difíceis, ele tem uma relação bagunçada com os pais, ele não gosta que guardem informações dele, ele tem uma queda pelo Felix, o humor dele é afiado feito agulha, ele é charmoso e provocador. Ele é tantas coisas além de trans. Eu sei que tem gente que não achou muito incrível que ele teve um plot no episódio... Mas eu aprecio muito porque signfica que puderam fazer dele um personagem tridimensional.

O Conhecimento do Elenco/dos Escritores: tudo isso veio do trabalho feito por essas pessoas pra assegurar que elas estivessem não contando "a história trans", mas "a história do Tony". O respeito e cuidado com que lidaram com isso foi notável.


Nós somos uma comunidade grande que nunca foi tratada com cuidado e respeito, que nunca ouviu que nossas histórias são importantes (mesmo em espaços LGBT, há muita hesitação quanto a pessoas trans). É difícil perceber a ausência de algo, e eu sei que pessoalmente eu nunca imaginei que as coisas pudessem ser diferentes de nunca ser completamente eu mesmo, nunca estar completamente seguro em qualquer lugar. Eu não sabia que a vida podia ser de outra maneira.

Eu nunca soube que precisava de um espaço seguro pra ser eu todo, até que Orphan Black (a série e a base de fãs) me deu isso. Acredito que muitos outros homens trans se sentem da mesma maneira.

Não sabíamos que precisávamos de um lugar ao qual pertencer, onde nossas histórias importam, até que nos deram um. E por isso eu serei pra sempre grato e motivado.

Eu sou um cara trans velho (10 anos pós-transição) e frequentemente me sinto apagado no segundo plano da comunidade LGBT. Um pouco disso é meu, eu não falo muito sobre ser trans, não é o foco da minha vida (minha transexualidade não é a coisa mais interessante a meu respeito), então eu deixo escorregar pro pano de fundo. Eu também, ultimamente, tenho evitado certos espaços LGBT porque eu me canso de bater cartão de trans. O lado bom de andar pelo mundo cis hétero acessando privilégio de "passabilidade" é que eu consigo ser só eu.




Dito isto, eu não tinha ideia de quão faminto eu estava por alguém como eu na mídia. Por quão voraz eu estava pra que fosse tudo bem ser eu. Eu posso passar como qualquer outro cara, e na verdade eu sou qualquer outro cara. Mas eu também tomo testosterona, e usei binder por alguns anos (grato por conseguir a cirurgia e não precisar mais fazer isso), e preciso me preocupar, por exemplo, com o que dizer a garotas com quem eu saio quando chegamos ao ponto em que sexo é uma possibilidade. Nenhuma dessas coisas faz de mim menos homem, mas... Eu acho que as escondo porque estou cansado de isso significar que eu sou uma aberração. Eu não quero ser uma aberração. Eu só quero ser um cara que tem esses aspectos na vida dele. E isso é o que o Tony é e... eu adoro isso. Eu precisava disso. Eu sinto isso até os ossos.

Quando as pessoas falavam de representatividade, eu não realmente entendia. Quero dizer, abstratamente, claro, mas não desse jeito. Não esse sentimento profundo e supridor de ser de alguma forma mais humano, mais válido, mais real, mais ok, mais normal do que eu poderia jamais esperar. Então, obrigado, Orphan Black, por isso.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

bifobia: existe sim


[Aviso de conteúdo: este é um texto sobre bissexualidade e bifobia, entre outras coisas, e contém descrições de abuso]

Há poucas coisas que eu considere especiais na minha vida. Uma dessas coisas, como pessoa não-hétero, foi notar, depois de anos de negação e inconsciência política consequentes da heterossexualidade compulsória, que o meu primeiro crush, aos 12, foi por uma menina ruiva da oitava série. Aos 14 ela já era uma lésbica assumida — e eu a achava nada menos que absolutamente incrível por isso. Uma pessoa poderia dizer que ter um crush numa mina não é necessariamente tão especial, afinal eu sou uma pessoa designada mulher e já sei que eu não sou hétero, portanto esse fato acaba sendo apenas mais uma obviedade ou tão especial quanto um primeiro crush seria pra qualquer pessoa. Eu diria que essa pessoa provavelmente é monossexual. O que isso tem a ver? Oh well.

Eu me lembro de ter dito a mais de uma colega no colegial, depois de ter me envolvido com uns poucos meninos, que eu não era lésbica (afinal eu gostava de meninos, o que só podia significar que eu era hétero, certo?), mas se fosse, eu com certeza ficaria com aquela menina (crush intenso, né? Só posso dizer que dura até hoje). Não tenho dúvidas de que muitas pessoas como eu já estiveram num momento parecido, em que talvez tenham inclusive usado essa mesma frase, e não houve uma alma viva sequer pra sugerir que elas pudessem ser bissexuais — pelo menos não em tom que não fosse de piada. Eu sei que eu não tive.




Quando eu conheci o primeiro grupo de lésbicas que passariam a ser minhas amigas, eu estava num relacionamento monogâmico com um homem cis (todas chora). Uma delas, outra ruiva (coincidência? Nunca saberemos), passou por algo que eu só posso identificar como uma fase bem intensa de negação. Eu jurava que você era sapatão, e eu sempre acerto, não é possível!, ela me disse, várias vezes. Depois que o meu relacionamento com esse cara cis terminou, a crença de que eu era uma mulher heterossexual era tão absoluta que ela literalmente entrou em choque quando disse que estava ficando com uma garota lésbica do meu trabalho. Eu sabia que eu tava certa!, ela passou a dizer. E eu pensei What the hell, tava mesmo.

Eu e essa garota trabalhávamos na mesma empresa, mas morávamos em regiões diferentes e por isso não nos víamos com tanta frequência fora do trabalho. Demorei um bom tempo pra entender que meu relacionamento com ela, que durou alguns meses, envolveu muitas coisas bem problemáticas, e mais tempo ainda pra compreender que a maioria delas aconteceu especificamente porque eu sou bissexual.

[Descrição de situações constrangedoras e abusivas]

Essa garota era sagitário, extrovertida às vezes ao ponto de ser inconveniente, e gostava de falar pra quem quisesse ouvir que ela não chegava em ninguém, os outros é que tinham que chegar nela, porque sim. A merda começou quando eu vi que ela não se decidia (as ironias da vida, só as bis entenderão). Ela dizia que gostava do espaço dela, e quando eu respeitava esse espaço, ela reclamava que eu era uma pessoa fria. Ela dizia que não queria “misturar nossas vidas”, e quando eu dizia que ia pra algum lugar com alguém, reclamava que eu não a apresentei pra nenhum dos meus amigos. Num momento agia de forma doce, ou dizia coisas fofas, e em outro falava como se eu estivesse forçando a barra num relacionamento que ela não tinha verdadeiro interesse, aí voltava pro momento fofura de novo. Num dia dizia que "não gostava de grude", no outro me perguntava por que eu não tinha ciúmes das amigas dela, insinuando que eu era uma pessoa indiferente que eu era indiferente a ela, porque no final das contas eu "era hétero". A questão é que, além dos hoje óbvios abusos psicológicos e manipulação, ela me perguntava frequentemente sobre o meu relacionamento com meu ex e sobre outros garotos cis com quem eu já me envolvi, se eu tinha transado com todos eles, pedia detalhes, queria saber se eu achava que o menino novo da equipe de atendimento era bonito, por que eu nunca havia ficado com uma mulher antes, perguntava que tipo de mulher eu achava que combinava comigo como quem dá a entender que nenhuma porque, de novo, eu "era hétero", queria saber se eu nunca sequer tinha pensado em dar um beijo numa mulher, e se já tinha, por que não tinha feito isso antes, e por que namorei um cara, mas como, se eu gostava de mulher mesmo, e se eu não era hétero, por que tinha ficado com ele pra começo de conversa, porque ela sabia que era lésbica desde que nasceu, e se eu não tivesse um crush numa menina na pré-escola pra contar pra ela então o mais provável é que, pela milionésima vez, eu fosse hétero. Perdi a conta de quantas vezes ela não somente me disse que não achava que "eu gostava de mulher de verdade", como também que eu com certeza era hétero, porque eu tive um relacionamento de mais de sete meses com um homem e eventualmente “voltaria a ser como eu sempre fui” — não é bem o tipo de coisa que se diz pra uma pessoa com que se está relacionando, né? Além do mais, ela também já tinha ficado com caras cis. Também perdi a conta de quantas vezes ela deliberadamente fez comentários e perguntas explícitos envolvendo sexo entre mulheres cis por saber que eu nunca havia transado com uma mulher, ou sexo a três envolvendo homens, ou simplesmente querendo saber se eu achava que podia gostar mesmo de transar com uma mulher cis quando rolava isso ou aquilo, tudo com o simples objetivo de me constranger, inclusive na frente de outras pessoas. O negócio dela era matracar e testar limites. Um dia, ela enfiou a mão na minha calça num ponto de ônibus. Ela assumiu que eu dobrei minha jaqueta na frente do corpo pra disfarçar a mão dela lá. Não me passa pela cabeça um momento em que eu tenha dado a entender que eu queria que ela me masturbasse à noite num ponto de ônibus a um metro de distância do melhor amigo dela. Dentro do ônibus, os dois riram da minha cara, porque eu “era hétero”, nunca tinha transado com uma mulher e fiquei com cara de porta sem saber o que fazer quando uma menina tava com a mão dentro da minha calcinha no meio da rua. Eu não vi essas coisas como vejo agora até muito tempo depois de nosso envolvimento ter terminado, pouco tempo após esse episódio.
 
[Fim da descrição]



Depois do término com essa garota, eu me envolvi com algumas mulheres, até que um dia, na casa de uma amiga depois do bar e a casa lotada de gente, eu fiquei com um cara cis. Na manhã seguinte, a piada interna era as pessoas falarem “ué...” toda vez que olhavam pra minha cara até alguém explicar que o significado disso era "Mas você não era lésbica?". Eu me lembro de que quando eu disse pro meu pai que estava ficando com uma menina, ele me respondeu que não se sentiu nem um pouco surpreso, muito menos incomodado (ele gosta de pagar de prafrentex), porque “ele me conhece” e, portanto, sabia que eu eventualmente decidiria “experimentar”. No entanto, a primeira pergunta que ele me fez logo antes de o meu envolvimento com a menina descrita acima terminar foi: “Mas e aí, você já decidiu se gosta de homem ou de mulher?”

Foi pouco antes dessa época que eu parei pra analisar essas coisas, e analisar a mim, e considerar a bissexualidade como uma orientação válida e legítima — e é aí que entra a menina ruiva do meu crush aos 12. Até então, como eu já disse no segundo parágrafo desse lindo texto, até por volta dessa época não houve alguém que tivesse me sugerido genuinamente: “Cara, talvez você seja bissexual”. Não somente eu não me recordo de alguém ter sugerido isso sem fazer uma piadinha básica até por volta desse período, como me lembro de ouvir pessoas contrariando possibilidade com os clichês de sempre (bissexualidade é indecisão, desculpa pra não se assumir, desculpa pra trair, promiscuidade, impossível, "é preciso escolher um lado", blá). Eu também sei que não havia (e ainda não há uma suficientemente) boa representatividade bissexual na mídia pra que eu tivesse considerado essa possibilidade antes. Não é que eu nunca tivesse ouvido falar em bissexuais ou nunca tivesse visto, por exemplo, uma personagem bissexual num filme ou numa série de televisão. Essas pessoas apenas nunca eram representadas como sendo de fato bissexuais, dado que a partir do momento em que elas entravam num relacionamento (invariavelmente monogâmico) com alguém, o gênero desse alguém passava a definir a orientação delas, que passavam a ser heterossexuais, gays ou lésbicas, e as experiências que se desviaram dessas definições passavam a ser consideradas uma espécie de aventura, curiosidade morta ou simplesmente um “bug” — a bissexualidade era apenas uma fase transitória entre uma orientação e outra. Isso quando essas pessoas não estavam transando "desvairadamente" justamente por serem bissexuais, e numa sociedade onde a monogamia e a misoginia imperam isso é sempre colocado como algo altamente reprovável, ou usado como apelo sexual pra homens cis hétero, se a pessoa em questão é uma mulher ou uma pessoa designada mulher — e novamente bissexualidade deixava de ser uma orientação sexual legítima pra ser um tipo de conduta sexual específico e necessariamente visto com maus olhos. Era como se bissexualidade não fosse algo pra valer todas as referências que eu tinha deixavam muito claro que ela não devia ser levada a sério. Pra não mencionar o fato de que nunca — nunca — se usava a palavra bissexual pra definir a orientação de alguém.

Me atrair por homens [cis] sempre foi esperado de mim como é esperado de toda pessoa designada mulher, então eu tive referências suficientes quanto a isso, e nunca foram impostas dúvidas a mim ao se tratar deles, afinal ninguém questiona a heterossexualidade — muito pelo contrário. Mas tudo o que eu aprendi sobre sexualidade me dizia que, se eu sentia atração por homens, era impossível que eu também gostasse de mulheres e outros sexos (hell, "nem existem outros sexos"), o que me levou a crer por muito tempo que o que eu sentia por mulheres não podia ser atração, tanto romântica quanto sexual, e depois de eu entender que era isso o que eu sentia, que eu não podia agir de acordo com isso. Depois de compreender essas coisas, ter o meu primeiro crush por aquela menina ruiva, assim como por outras meninas, como uma evidência de que eu me atraía de fato por outras pessoas além de homens foi importante pra mim, pra que eu me me sentisse consistente com relação à minha bissexualidade pela primeira vez, especialmente num meio em que ser bissexual é algo tido justamente como uma forma de inconsistência e essa alternativa só aparece como algo válido, legítimo, real, depois de muito tempo, com muito esforço, num "pacote" em que possuir evidências é necessário pra enfrentar as negações e dúvidas impostas a qualquer pessoa que declare-se bissexual.

Relatei todas essas coisas porque, antes de tudo, bifobia é algo que precisa ser discutido com a devida consideração e, depois, porque negar que essas coisas sejam monossexismo e bifobia é precisamente negar ou diminuir as violências que eu sofri, independente do grau em que elas foram cometidas contra mim ou de onde e de quem elas partiram, por eu ser bissexual.

Eu não apenas acredito, eu sei que toda pessoa bissexual passou por pelo menos uma das situações que eu citei acima (e outras por situações ainda mais agressivas), e que principalmente mulheres e outras pessoas trans (como eu) estão sujeitas a situações desse tipo com um risco muito grande ao se relacionarem com pessoas monossexuais, especialmente quando se trata de homens cis. Por essas razões, dizer que bifobia não existe é algo violento. Eu tenho visto muita merda sendo dita por pessoas monossexuais a respeito do assunto, e resolvi citar algumas delas.


"Falar em monossexismo e bifobia é colocar heterossexuais, lésbicas e gays no mesmo saco"


Eu ser uma pessoa branca sem deficiência física não me impede de sofrer misoginia, transfobia e bifobia, e eu ser uma pessoa trans designada mulher e bissexual não me impede de ser racista ou capacitista. É assim que as coisas funcionam, pois há violências demais neste planeta, de modo que é impossível dividir todo o mundo em apenas duas categorias distintas de Pessoas Que Somente Sofrem Violências e Pessoas Que Somente As Cometem.
 
Então eu tenho uma sugestão pra fazer. Se você chegou a esse ponto da sua análise ou do seu ativismo sem compreender que diversas formas de violência e opressão coexistem na nossa sociedade, e que as pessoas não são somente opressoras ou somente oprimidas, afinal quase todas podem sofrer uma forma de violência e praticar e perpetuar outra: volte ao início e, no caminho de volta, dê uma pesquisada básica sobre intersecionalidade, porque você obviamente perdeu alguma coisa no meio do processo.

Nós usamos a palavra misoginia pra falar de uma violência que parte de homens cis, e nos referimos a ela sem nos preocuparmos se estamos falando de um homem cis hétero, gay, bi, classe média, pobre, branco, negro, com ou sem deficiência. Isso não significa que estamos dizendo que um homem cis hétero e branco de classe média e um homem cis negro bissexual e periférico ocupam a mesma posição social, porque não ocupam. Significa que independente da posição que eles ocupam por conta dessas características, eles estão protegidos da misoginia, podem ser, e são, misóginos e se beneficiam da misoginia, porque são homens cis. Nós usamos a palavra racismo pra falar de uma violência que parte de pessoas brancas, e falamos dela sem nos preocuparmos se estamos falando de pessoas brancas que são mulheres, homens ou de outro gênero, se são trans ou cis, hétero, homo ou bissexuais, ricas ou pobres — você pegou a ideia. Não significa que estamos dizendo que um homem branco transexual que tá na escola pública  e uma mulher branca cis que estuda na Mackenzie ocupam a mesma posição social, porque não ocupam, mas que independente da posição que essas pessoas ocupam por conta dessas características, por serem brancas, elas estão protegidas do racismo, podem ser, e são, racistas e se beneficiam disso. Nós usamos a palavra lesbofobia sem nos preocuparmos se estamos falando de homens ou mulheres, de qualquer raça ou classe econômica
, trans ou cis. Isso não implica em dizer que um jovem cis gay branco que fez Anglo pra entrar na faculdade pública e uma uma mulher negra cis hétero sem formação acadêmica estão na mesma posição social ou possuem o mesmo poder estrutural. Só significa que quem não é mulher lésbica pode agir com violência lesbofóbica, inclusive quando pode passar por ela, no caso de mulheres bi, e quando vai estar sempre protegido dela, no caso de homens cis.

Ora, pois, já que o mesmo vale pra toda forma de violência e opressão, aprendam que bifobia é uma violência que parte de pessoas que não são bissexuais e que, independente de suas outras características e opressões que sofram, podem ser e são bifóbicas. Isso, juntamente com definir pessoas que sentem atração por apenas um sexo como monossexuais, não é o mesmo que dizer que gays, lésbicas e heterossexuais ocupam a mesma posição social: é apenas dizer que essas pessoas compartilham uma característica que de maneira geral as protege da bifobia e as coloca em posição de violentar pessoas bissexuais por serem bissexuais — de formas diferentes e em níveis diferentes, por motivos de recorte.

"Bifobia non ecziste, bifobia é homofobia"

 
Eu consegui perfeitamente entender que lesbofobia, por exemplo, é um termo que existe e que difere de “homofobia” porque o que lésbicas sofrem por serem lésbicas vai além do fator “relação homoafetiva”. Além: pra forma como é aparentemente ultrajante uma mulher não amar ou desejar um homem, pra forma como homens controlam ou fazem de si mesmos o centro da sexualidade de mulheres, se vendo como causa, cura ou público da lesbianidade, entre outras questões que estão contidas justamente no fato de elas serem mulheres homossexuais: lésbicas.

Sendo assim, eu espero das pessoas que elas ao menos tentem entender que bifobia é um termo que existe e difere de “homofobia” e “lesbofobia” porque há violências que pessoas bissexuais sofrem por serem bissexuais que não se tratam somente do fato de que podemos nos relacionar com alguém do mesmo sexo, ou outro sexo além do "oposto". São questões que vão além disso, pra forma como mesmo entre pessoas já consideradas ilegítimas, nos dizem que somos ilegítimas; pro jeito como policiam nossas identidades e as submetem a escrutínio e critérios alheios em troca de uma validação que não pedimos; pra forma como os estereótipos a nosso respeito aumentam os riscos de passarmos por um relacionamento abusivo com pessoas hétero e homossexuais, porque supostamente precisamos de vigilância constante (como qualquer pessoa que "naturalmente tende a trair" precisa) ou porque deveríamos querer fazer isso ou aquilo durante o sexo (como qualquer pessoa "exploradora" que "gosta de tudo um pouco" deveria querer); pra como muitas pessoas bissexuais já sofreram abuso e violência por parte de parceiros/namorados/(insira) ao se assumirem bissexuais pra essas pessoas, mesmo estando num relacionamento monogâmico sem ter a intenção de terminá-lo; pra como não somos heterossexuais o suficiente pra ocupar espaços reservados a héteros, ou gays/lésbicas o suficiente pra habitar espaços que se pretendem LGBT, a menos que escondamos que somos bissexuais; pra como muitas vezes uma pessoa bi considerada “gay no armário” não recebe o mesmo apoio de uma pessoa que é de fato homossexual e está no armário; pra como não levam a sério as consequências tanto da heterossexualidade compulsória quanto da violência bifóbica em nossas vidas; pra como passa a ser aceitável julgar uma pessoa com base nas transas dela quando ela é bissexual; pra como todo mundo se sente confortável demais questionando o histórico sexual de pessoas bissexuais e julgando quão válido é se dizer bissexual com base nesse questionamento; pra como todo mundo acha normal querer definir regras que limitam a sexualidade de pessoas bissexuais até que de alguma forma elas não "se comportem mais como bissexuais"; entre outras questões que estão contidas justamente no fato de que somos bissexuais, especialmente quando somos mulheres e outras pessoas trans.

"Você está sendo uma pessoa homofóbica/lesbofóbica por falar de bifobia e monossexismo"


Antes de qualquer coisa, devo avisar que eu me recuso a usar ou reconhecer os termos “heterofobia” e “gayfobia” numa conversa séria, apesar de tê-los ouvido na mesma lógica da frase acima.

Se isso tem a ver com você se recusando a admitir que suas atitudes bifóbicas são bifóbicas, como quando homens heterossexuais assediam e objetificam mulheres bissexuais e chamam isso de apreciação, ou as controlam em dobro e chamam isso de proteção, ou homens homossexuais recusam a presença de um homem bissexual num espaço LGBT porque ele “é na verdade hétero” e chamam isso de tornar um espaço seguro, ou quando lésbicas dizem que não ficariam com uma mulher bissexual porque a) ela provavelmente tem uma DST b) não querem sentir bafo de pinto c) namorar uma bissexual é pedir pra ser chifruda d) bissexuais possuem uma tendência natural à heterossexualidade, chamando isso de autopreservação, pra no mesmo fôlego indagarem os motivos de bissexuais supostamente preferirem homens e preterirem lésbicas... Caguei pra você.

Se isso tem a ver com você se recusando a enxergar bifobia como uma violência estrutural porque você "é homossexual e não pode oprimir bissexuais", assim como fulana "é mulher (branca) e não pode oprimir outras mulheres (negras)", ciclano "é bi e não pode ser misógino", e beltrano "é surdo e não pode ser transfóbico", porque eu já ouvi todas essas coisas... Caguei duas vezes.

"Bifobia é um bagulho que inventaram no Tumblr, e por isso é pura frescura"

“Bifobia de Tumblr” está pra monossexuais assim como “Feminismo de Facebook” está pra homens cis, “Apropriação Cultural é papo de Twitter” está pra gente branca e “Trans de internet” está pra gente cis. Boa sorte com isso.

“Você tem privilégio de passabilidade hétero; dizer que você sofre bifobia é como dizer que sofre heterofobia e homofobia ao mesmo tempo”


Nunca vou conseguir terminar a contagem de erros contidos nessa frase.

Antes de qualquer coisa, façam-me um favor: abandonem a ilusão presunçosa de que somos a metade de vocês. Nós não somos metade hétero e metade gay. Na melhor das hipóteses, vocês é que são metade bi.

Agora, um grande vai se foder pra pessoa que decidiu comparar bifobia com "heterofobia". Bifobia nunca significou, nem nunca significará que quaisquer pessoas podem sofrer preconceito porque são vistas como sendo heterossexuais — aguardando ansiosamente por alguma evidência de que isso foi afirmado em algum lugar. Significa que pessoas bissexuais podem sofrer certos tipos de violência por serem bissexuais por parte de qualquer pessoa que não seja bissexual, inclusive quando estão numa relação compreendida como heterossexual, especialmente quando se trata de mulheres e outras pessoas trans.

Mas o que me deixa completamente abismado com essa frase é como, quando se trata de bissexualidade, de repente passa a ser válido ignorar como apagamento, heteronormatividade e cissexismo funcionam — se você ainda não conseguiu compreender completamente como essas coisas operam, refaço a sugestão: comece outra vez, porque a compreensão dessas coisas é fundamental pra que você continue abrindo sua boca sem passar vergonha.

Eu não sei se vocês tão sabendo, mas a maioria das pessoas tem o que vocês chamam de "passabilidade hétero", porque isso é o que heteronormatividade significa. Se eu sair de manhã pra comprar o pãozinho na padaria, com meu cabelo raspado, jeans comprado na seção masculina e camiseta, muitas pessoas ainda provavelmente vão assumir que eu sou cis e hétero (risos). Se amanhã você decidir sair pra comer com alguém de sexo diferente do seu? Hétero. Tá na Augusta cazamiga? Hétero. Tá passeando com o cachorro? Hétero. Jogando pebolim? Hétero. É menina e tá numa festa beijando outra menina? Hétero querendo se exibir pros caras. Sempre assume-se que todas as pessoas são cis e hétero, sempre apaga-se a não-heterossexualidade (e a não-cissexualidade) delas, a menos que elas estejam fazendo algo que seja capaz de refutar isso ou a aparência e comportamento delas, caso desviantes, insinue ou afirme o contrário. É assim que funciona pois é isso que cis e heteronormatividade são. Então, BREAKING NEWS: falar de “privilégio de passabilidade hétero” pra pessoas bissexuais como se o mesmo não ocorresse com basicamente todo mundo é bifobia.

Por fim, como eu já expliquei muitas vezes, opressão e violência não se resumem a uma única faceta ou momento da sua vida, como quando você tá de boas andando na rua e ninguém resolveu te esfaquear. Se uma pessoa bissexual pode estar num relacionamento percebido como cis-hétero (inclusive quando é trans) e assim estar protegida de sofrer certos tipos agressão? Isso é óbvio, assim como uma mulher cis lésbica e um homem cis gay podem simplesmente andar ao lado um do outro na rua sem receber uma lâmpada na cabeça porque as pessoas à volta podem pensar que eles são um casal.

Acontece que essas violências se manifestam de muitas formas além de agressões físicas ou diretas. Além de haver diversas formas através das quais uma opressão se manifesta, se as pessoas são diferentes e percebidas pelo meio que habitam de formas diferentes, então elas vão sofrer essas violências de formas diferentes, aspectos diferentes, momentos diferentes. É por isso que homens cis gays afeminados passam por tipos de violência homofóbica que os que são percebidos como "mais masculinos" não passam, ou que lésbicas que se encaixam melhor no senso comum de feminilidade sofrem violências lesbofóbicas diferentes das que afetam as butch (cansa muito explicar o óbvio, sério). Sendo assim, mesmo que uma pessoa bissexual seja vista na rua e as pessoas a classifiquem como hétero, aquela pessoa não é heterossexual, porque a sexualidade dela não é definida ou validada pelo sexo das pessoas com quem ela se relaciona (tem certeza de que vocês entenderam mesmo o que significa bissexual?), e como eu já expliquei neste mesmo texto, uma pessoa bissexual que está se relacionando com uma pessoa do sexo considerado “oposto” não está necessariamente tão segura quanto uma pessoa heterossexual se relacionando com outra pessoa hétero estaria. O que eu narrei sobre a primeira garota com quem me relacionei poderia (inclusive muito mais) facilmente acontecer, e acontece, caso o relacionamento fosse com um homem cis hétero. Estar num “relacionamento hétero”, mesmo que possa proteger uma pessoa de formas específicas de violência, não torna bissexuais heterossexuais, nem significa que seja mais fácil falar de bissexualidade com pessoas hétero, ou que violências perpetradas especificamente pelo fato de sermos bissexuais não possam ocorrer por parte de parceiros ou de qualquer um. Além disso tudo, não é como se "toda mulher bissexual"  estivesse se relacionando com um homem cis hétero monogamicamente há 5 anos e meio, nem como se "a sua amiga que é bi e nunca sofreu bifobia" apagasse agressões que outras pessoas bissexuais sofreram por serem bissexuais (tokenismo e reducionismo mandam beijos).

Talvez o problema aqui seja que você simplesmente não está entendendo que pessoas bissexuais não são heterossexuais — e mulheres e homens cis não resumem a existência dos sexos.

"Você não pode mudar a definição de bi, você está embaçando a linha entre bi e pan, a bissexualidade é binarista"
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Pra começar, se você é uma pessoa binária e mono, isso definitivamente não é problema seu; é meu, que sou uma pessoa trans não-binária e bissexual, até porque, pra quem tem uma orientação que na maior parte do tempo depende do conceito de sexos binários, você não será a pessoa mais indicada a falar sobre isso, não é? Depois, se tem uma coisa que eu definitivamente não acho é que num planeta com mais de quatro bilhões de anos de idade com mais de 7 bilhões de pessoas cuja história mudou milhares de vezes ao longo do tempo a gente não pode mudar a definição de uma orientação sexual — se é que algum dia essa definição foi fixa como você propõe. Independente do que você acha, a definição de bissexualidade como sendo uma orientação que não engloba somente gêneros binários é bem menos recente do que possa parecer.

E claro, "bi" em bissexual só pode significar "os dois gêneros binários", tomates-cereja são cerejas, mechas californianas só são feitas na Califórnia e peixes-palhaço trabalham no circo.



Em suma: pessoas bissexuais existem, e bifobia é uma realidade. O fato de que ela não é uma realidade pra você não faz com que ela deixe de existir. Quer queiram reconhecer isso ou não, pessoas monossexuais são parte de um grupo que pode praticar e perpetuar essa violência e esse assunto é tão digno de atenção e consideração quanto qualquer outro assunto envolvendo qualquer outra opressão ou violência. Tratem-no como tal, deixem de ignorá-lo e parem com essa merda de ficar dizendo que a violência que pessoas bissexuais sofrem não existe ou não importa porque isso não te afeta ou supostamente vai te tirar o status de pessoa oprimida.

O movimento bi não nasceu ontem. Passou da hora de reparar, mozão.