quinta-feira, 3 de abril de 2014

sobre o potencial de estuprar

[Aviso de disparador: este texto fala de estupro e aborda abuso sob a perspectiva de como pessoas são afetadas por uma cultura misógina e heterossexista que naturaliza abusos]

Uma pessoa me perguntou no meu ask.fm se eu conhecia algum texto que abordasse o conceito de que todo homem é um estuprador em potencial. Como eu não conhecia nenhum texto específico a respeito, eu dei a explicação a seguir, com algumas modificações.

Quando dizemos que homens cis são estupradores em potencial, eles geralmente não compreendem o que queremos dizer com isso. Eles interpretam essa frase como uma acusação, um ataque pessoal. No entanto, esta é uma questão social, coletiva, referente à forma como pessoas designadas mulheres e pessoas designadas homens ao nascer são criadas na nossa sociedade.

A diferença entre a educação que a maioria das pessoas recebe de acordo com o sexo delas ou que foi designado a elas é óbvia. Basicamente, o homem cis é criado pra ser forte e conquistar coisas; há toda uma gama de coisas que ele é incentivado a explorar e que mulheres são incentivadas a esconder ou reprimir, então esse se torna o papel do homem cis — ele tem que ser macho, e ser macho é basicamente ser dominador, o que invariavelmente significa agir (também) com agressividade, em suas diversas formas. Pra ficar bem explícito: não, não significa que 100% de todos os homens cis do planeta sejam agressivos e violentos. Uma pessoa pode ser ensinada a se comportar de uma forma e ainda assim acabar desenvolvendo uma personalidade completamente diferente do que é esperado dela. O que isso significa é que na nossa sociedade 100% deles é incentivado a ser agressivo e dominador e isso vai ter um impacto neles de uma forma ou de outra. Mas o ponto crucial aqui referente a esse assunto é que o homem cis, obviamente criado pra ser heterossexual, é incentivado a explorar e até exibir a sua sexualidade o que inclui coisas super úteis e importantes como se gabar de fazer sexoe a conseguir sexo. Pense nisso: conseguir sexo.



A mulheres e pessoas designadas mulheres é ensinado o contrário. Mulher agressiva é feio. Mulher ambiciosa é feio. Mulher que transa é pior ainda — e aí é que você enxerga um problema em ensinar uma parte da população a conseguir sexo e sexualizar a qualquer custo e a outra a evitar ser sexual. Mas uma das partes mais importantes: quando não se aprende a defender-se de forma incisiva, quando agressividade é algo fora dos limites pra você, quando não é esperado que você esteja no comando de qualquer coisa, fica difícil aprender a dizer não. Em meio à cultura do estupro, nós somos as pessoas ensinadas a ter medo dos homens. Pode parecer estranho quando colocado dessa forma, mas quando você passa sua vida inteira ouvindo sobre como é perigoso beber demais na companhia de homens, ficar sozinha com homens, pegar carona com eles, até mesmo cruzar com eles numa rua deserta, ou simplesmente confiar neles, é isso que você sente: medo. Isso, entre outros elementos da nossa cultura misógina, definitivamente não ajuda uma pessoa a ser assertiva ou a exigir o respeito que merece, a possuir a mesma tenacidade e confiança incentivadas a homens cis, em especial os heterossexuais e brancos.

No texto em inglês que eu linkei no trecho "uma concepção deturpada e extremamente tendenciosa do que é estupro" deste texto, 1882 homens cis responderam a perguntas pra uma pesquisa. Nessa pesquisa, pessoas perguntaram a eles se eles já haviam estuprado alguém sem usar a palavra "estupro", como em "Você já fez sexo com alguém depois de usar força ou ameaça?". 120 admitiram que sim. Mas se perguntassem a eles se eles já estupraram alguém, eles diriam que não — porque eles não acham (ou se recusam a admitir) que aquilo foi estupro.

O que isso significa? Que estupro foi naturalizado. Por "naturalizado" eu quero dizer que homens cis não aprendem o que de fato constitui estupro, de forma que quando alguém os encoraja a estuprar alguém (como numa situação em que uma das partes não está sóbria, por exemplo, ou "cedeu" após a grande insistência que foi ensinada a eles em primeiro lugar porque eles têm que conseguir sexo), eles provavelmente veem essa atitude como perfeitamente natural, e também quero dizer que as pessoas sabem que homens agem dessa forma porque elas mesmas reforçam esse pensamento o tempo todo, mesmo quando não chamam isso de estupro, e mesmo quando não percebem que estão repetindo essa ideia, porque essa é uma questão cultural muito enraizada.

Nós quase inacreditavelmente agimos como se homens naturalmente estuprassem, como se isso fosse da índole deles, afinal boys will be boys, e além: agimos como se eles estuprassem para corrigir o comportamento das mulheres cuja conduta não é considerada aceitável pra uma mulher, ou seja, "ela foi estuprada porque é uma puta", ou "porque estava usando uma roupa curta demais", ou "porque ela estava desacompanhada", ou porque "aceitou ir até tal lugar sozinha com fulano", e, sendo assim, ela mereceu, ou ela é a culpadae além disso procuramos diversas atenuações pra estupros o tempo todo, dizendo que ela não foi estuprada "de verdade", ela "só estava um pouco bêbada", "só disse não de início", "eles se conheciam" ou "eram amigos", "ela era namorada/esposa dele", ou alguma escrotice similar, como se a vasta maioria dos estupros não fosse cometida por conhecidos ou parentes (vá em frente e faça uma rápida pesquisa pra constatar que a grande maioria dos estupradores são conhecidos de suas vítimas).

Veja bem, ao invés de dizer pros meninos cis pra não incomodarem meninas sozinhas, não tocarem nelas se elas estiverem bêbadas, não se sentirem no direito de tocar o corpo delas por que elas estão com uma roupa curta, enfim, ao invés de deixar claro que homens não têm livre acesso ao corpo delas, as pessoas dizem pras meninas não provocarem os meninos. 



É como ensinar pra uma menina que isso é o que homens cis fazem, e que isso é inevitável, portanto cabe a essa menina (ou pessoa designada menina) a responsabilidade de evitar colocar a si mesma em situações em que homens cis sintam vontade de fazer sexo com ela, porque se eles sentirem essa vontade, eles farão e ela não poderá impedi-los — ou ainda, que cabe a ela não contrariar a lei dos homens (não seja agressiva, não flerte, não tenha amigos homens demais, não transe demais, não beba demais, não assuma ter plena propriedade sobre seu corpo), pois estupro é um corretivo. É isso que está implícito nessa educação num contexto social. Homens cis são educados pra estuprar, porque não são educados pra entender o que viola a autonomia e o consentimento de alguém, porque numa sociedade misógina o consentimento de mulheres e outras pessoas trans é irrelevante  e as pessoas agem como se estupro fosse natural, instintivo, inevitável da parte deles, porque eles têm sido educados assim há muito tempo (e ao falar de educação não me refiro simplesmente a pais e responsáveis, mas todo o conjunto de fontes de informação que temos ao longo de toda uma vida, o que inclui o que você consome, por exemplo, na mídia).

É assim que, conscientemente ou não, você chega à conclusão de que... é isso. Homens estupram, tome cuidado, você pode ser a próxima vítima. Ouvimos essa mensagem implícita sempre que alguém nos manda tomar cuidado quando estamos prestes a ter contato com um homem. Mas de repente isso é demais? Podemos passar toda uma vida ouvindo que lidar com homens cis é um risco, que ter contato com eles é perigoso, e quando dizemos que eles são estupradores em potencial, isso de repente se torna ofensivo? Ora, o foco deveria estar no problema estrutural da nossa sociedade misógina, e não nas vítimas de misoginia que enxergam e falam nada menos que a verdade.

Mas afinal, dizer isso de alguma forma significa que absolutamente todo indivíduo homem cis deliberadamente vê mulheres como seres inferiores e vai estuprá-las mesmo porque acha que elas merecem e foda-se? Não (tá, tá, "nem todo homem", a gente já entendeu), inclusive porque misoginia não se resume a atos explícitos e deliberados de violência física, pois opressão é algo muito mais complexo que isso. Significa que a educação misógina que eles recebem traz essa possibilidade (e dependendo do ponto de vista, a probabilidade), portanto, homens cis são estupradores em potencial. Individualizar um problema que é inerentemente coletivo, tratar algo social como um ataque pessoal, não vai te fazer parecer menos ameaçador. A própria sociedade como um todo já ensina homens cis a estuprar e ensina mulheres que homens cis estupram — interromper o debate a respeito pra trazer a atenção geral pro fato de que você "é um cara legal" não anula essa verdade a respeito do meio em que vivemos.

E aí, fica a pergunta: por quê o alvoroço? Porque numa sociedade regrada pela misoginia, torna-se instintivo negar a própria da misoginia, e não há maior prova do que a epidemia de estupros e como as pessoas lidam com isso.

Lembrando: isso não é ensinado somente na infância ou pelos pais. Isso é o que chamamos de "cultura do estupro" e é reafirmado e perpetuado constantemente por causa da forma como a sociedade, em especial homens cis, lidam com o sexo. Digo isso pra lembrar que mulheres trans e outras pessoas trans que assim possam ser vistas, quer tenham se apresentado assim desde a infância ou não, estão inseridas num contexto onde também aprendem a temer homens cis e são assimiladas por essa mentalidade, temendo duplamente: porque há a misoginia e há também a transfobia.

É claro que ao olhar pra essa situação por uma perspectiva individual pode levar um homem cis a se sentir ofendido. Acontece que isso não é sobre um homem cis. É sobre o panorama geral em que homens cis estão inseridos. É praticamente uma receita: junte "homem cis é ensinado a conseguir sexo" com "mulheres e outras pessoas trans são ensinadas a temer homens cis" e uma cultura misógina que pressupõe o consentimento automático de mulheres e não somente ensina que homens cis devem e têm direito a fazer sexo com elas como também repetidamente ajuda a encobrir abusos e você tem uma classe, um grupo de indivíduos que são estupradores em potencial, não porque são "malvados" ou qualquer besteira como essa, mas porque eles foram criados nesse contexto misógino onde eles "não sabem" o que define estupro, porque foi ensinado a eles que aquela atitude é aceitável, ou simplesmente acham que estuprar é aceitável — há homens que pensam que estupro é inclusive necessário, e se eu dissesse que foram poucos os que eu vi afirmando isso, estaria mentindo.

Numa sociedade onde estupro é considerado algo natural, é inevitável que exista culpabilização da vítima. Uma prática comum entre homens cis é dizer que "mudar a vestimenta é um dos cuidados a serem tomados contra estupros". O que eles dizem, mesmo que não percebam, é que, se uma mulher fizer a coisa certa, não será estuprada. Não somente essa é uma das maiores mentiras já contadas na história, como isso significa que estupro é uma forma de controle (como já citado no texto). "Faça o que eu digo e não será estuprada", é o que isso significa. Acontece que mesmo quando mulheres fazem o que é dito pra elas, elas são estupradas de qualquer maneira. Deixar de usar certo tipo de roupa, andar somente em determinadas ruas, falar somente com pessoas específicas, nunca andar desacompanhada à noite, nada disso impede uma mulher de ser estuprada. Pra citar um tweet de @DavidWanjiru: "Saiba disso: tudo o que você disser que mulheres devem ou não devem fazer pra evitar estupros, elas já seguiram esse conselho e foram estupradas mesmo assim"

Incumbir a vítima de evitar uma violência que será perpetrada contra ela é inaceitável. Sempre será inaceitável. Isso é culpabilização da vítima e nada mais. É dizer que temos culpa quando nos estupram, como se homens não pudessem evitar estuprar e a nossa função fosse evitar ser a próxima vítima, porque homens "de verdade", que "são poucos", não estupram, quem estupra são os "doentes", e com esses apenas não há o que fazer.

Acontece que estuprar não é inevitável, e estupro não é coisa de doente (capacitismo manda beijos). Estuprar é algo que homens cis fazem porque são imersos em misoginia pela nossa sociedade, porque nem sequer sabem que aquilo é estupro, ou quando sabem ou acham que não serão pegos, e quando sabem que se forem pegos haverá quem os defenda.

Não há nada de tão admirável em ser homem cis que torne um homem cis que estupra menos homem ou "homem de mentira". Estupradores são homens de verdade, nada além de crias saudáveis do patriarcado. Estupro não é algo inevitável ou instintivo. É uma violência misógina largamente usada como arma de opressão contra as vítimas de misoginia que não admitem ser submetidas. Você pode querer discordar, mas não é à toa que homens cis ameaçam mulheres feministas de estupro constantemente.

Nós, que passamos por misoginia, já tomamos os cuidados que nos aconselharam a tomar, porque sentimos medo. Nós já trocamos nossas roupas, já evitamos sair muito tarde, já evitamos beber demais em festas, anotamos a placa do táxi, procuramos andar com companhia, andamos com as chaves de casa entre os dedos no caminho entre o ponto de ônibus e o portão de casa, porque sentimos medo, e quando não fazemos essas coisas corremos o risco de pagar um grande preço. Não precisamos que homens cis nos digam mais uma vez o que nós passamos a vida ouvindo: que homens cis estupram. O que precisamos é que eles parem de encontrar desculpas para os estupros cometidos de forma a isentar o estuprador ou a negar a existência da misoginia. Não há meio de fazer isso. Não enxerga quem não quer. Nega a misoginia e a transmisoginia quem não a sofre e se beneficia dela. E não existe, nunca existiu, nem nunca existirá atenuante, justificativa ou relativização coerente e verdadeira para estupro.

Se homens cis são seres humanos num estágio pré-evolutivo e desprovidos de raciocínio suficiente para não estuprar porque, à vista de uma pessoa que lhes pareça atraente, é impossível para eles não violentá-la porque estupro é instintivo, não deveríamos estar tendo esta conversa. Deveríamos estar pensando em meios de mantê-los longe de suas vítimas e futuras vítimas. Mas sabemos que a epidemia de estupros não ocorre porque a classe dos homens cis é toda "doente". Ela ocorre porque homens cis são misóginos, e misoginia definitivamente não é um fato imutável da natureza.

O que falta aqui é termos uma sociedade que se empenhe mais em ensinar homens cis a não estuprar do que em ensinar vítimas de misoginia e transmisoginia a não serem estupradas. Que passe a ensinar homens cis a respeitar os limites, as vontades e os corpos das pessoas com quem eles se relacionam ou desejam se relacionar. Que pare de inventar desculpas pra isentar homens dos estupros que eles cometem. Que pare de nos dizer pra parar de viver pra que isso não provoque nos homens cis a vontade de nos estuprar.

A culpa não é, nunca foi, nunca será nossa.