terça-feira, 18 de novembro de 2014

not cis enough

Este texto foi escrito por uma pessoa trans brasileira. Além de este contexto ser ocidental, portanto não se encaixar na realidade de diversos outros países, ele também não vai caber perfeitamente na realidade de outros países ocidentais onde a cultura é diferente da cultura latina e brasileira.

[Aviso de disparador: este texto menciona elementos que podem causar disforia, e se trata de transfobia e bifobia]
 


O que são trans não-binários? Como vivem? O que comem? Como se reproduzem?

Não é de hoje que pessoas binárias, trans e cis, têm se dado o direito de responder a essas perguntas independente de não serem pessoas trans não-binárias e não saberem porra nenhuma possuírem de fato conhecimento a respeito dessa realidade. Geralmente suas respostas desembocam na mesma vala binarista de que “pessoas trans não-binárias não são trans o suficiente” ou "não são trans de verdade" porque não são homens e mulheres como elas.

Sendo assim, respondo eu: pessoas trans não-binárias são pessoas trans que não se encaixam no binário de gênero, ou seja, não são exclusivamente homens ou exclusivamente mulheres — podem ser agêneras, bigêneras, de gênero fluido, travestis, e inclusive em parte homens ou mulheres, entre várias outras formas de se existir dentro desse espectro, pois é isso que sexo/gênero é, um espectro. Essas formas de se existir são tão concretas e válidas quanto as que se encontram na parte binária desse espectro porque o que a gente entende por sexo ou gênero não é algo que magicamente já nasceu dentro das pessoas. Se pessoas trans não-binárias podem ser ou são incompreensíveis aos olhos da nossa sociedade, isso se deve ao fato de que o sexo/gênero foi instituído socialmente como sendo propriamente binário com o suporte dos homens cis brancos que sempre estiveram no controle da medicina e da biologia como a conhecemos, e à frente das colonizações. Mas como sabemos, a medicina e a biologia não existem desde sempre, e o gênero também não.


Eu, sendo uma pessoa trans não-binária, sempre me opus veementemente a uma Narrativa Legítima Única™. Pra quem não sabe, Narrativa Legítima Única é como muita gente define o "jeito certo" de ser trans, como se você tivesse a obrigação de se apresentar de um jeito específico, caso contrário, você não é trans “de verdade”. Isso é dominante na classe médica, que ainda define a transexualidade como um transtorno e impõe critérios pra que ela seja considerada válida, e muito comum entre outras pessoas em geral. Quantas vezes vocês já ouviram alguém dizer que uma pessoa trans só é trans caso...?

- seja binária (ou seja, ser exclusivamente mulher ou ser exclusivamente homem);
- tenha se apresentado assim desde a infância;
- tenha disforia;
- queira realizar cirurgias e terapia hormonal;
- esteja perfeitamente de acordo com papel imposto a um dos gêneros binários (ou seja, caiba o máximo possível nos estereótipos mais comuns de feminilidade e masculinidade);
- queira ter “passabilidade”;
- entre outras coisas.

Eu já ouvi isso incontáveis vezes e tenho plena certeza de que essas imposições só servem a um propósito: controlar e assimilar pessoas trans de forma que a nossa transexualidade seja mais aceitável, previsível e manipulável para pessoas cis. Elas também são nada menos que uma armadilha: você tem que caber no papel que impuseram a esse sexo, caso contrário não poderá exigir que te tratem de acordo com o que você é — e quando você faz isso, te acusam de “reforçar papéis e estereótipos de gênero”? Claro, porque pessoas cis não fazem isso, nunca — esses papéis são impostos a elas, mas não a pessoas trans. Não, pessoas trans tentamos nos encaixar em estereótipos porque, sei lá, a gente simplesmente quis, não é como se realmente nos cobrassem uma estética específica, ou um comportamento específico, e nos agredissem quando não cabemos nessas definições. Não, pera...

Já perdi a conta de quantas vezes ouvi pessoas cis falando bosta transfóbica fazendo comentários sobre como tal pessoa trans não é feminina ou masculina o suficiente, sobre como aquela outra tem tem traços que remetem "demais" a um homem ou uma mulher, sobre como tal pessoa trans que tem "passabilidade cis" é  uma pessoa transsexual "de verdade" e "diferente" de pessoas trans que estão distantes do que elas consideram ideal, ou até mesmo soltando um "Olha, se você quer mesmo 'passar', tente ser ou usar (insira elemento tipicamente atribuído a um sexo)". Depois, de consciência limpíssima e jurando de pés juntos que não apontam estereótipos pra pessoas trans como o caminho pra quem quer "parecer mulher/homem de verdade", elas olham pra sua cara e dizem: “Mas por que você acha que ser mulher/ser homem se resume a isso? Por que você recorre a estereótipos? Você está reforçando padrões de gênero!”

Estou falando todas essas coisas porque muitas vezes pessoas binárias palpitam na transexualidade de pessoas trans não-binárias porque não cabemos numa definição específica de trans, e por isso binarismo e a Narrativa Legítima Única™ estão muito intimamente ligados.

Eu vou citar a seguir coisas que vi pessoas binárias, trans e cis, dizerem a respeito de pessoas trans não-binárias porque a) elas simplesmente são binaristas b) elas não sabem de porra nenhuma do que estão falando.


“Pessoas trans não-binárias querem todas ser andróginas”

O que você entende por androginia? Quando você imagina uma pessoa andrógina, você pensa em alguém magro, branco, sem deficiência usando roupa de grife? Provavelmente sim. Nem te culpo. Quando eu busquei por “androginia” no Google enquanto estava escrevendo isto aqui, uma foto da Grace Jones apareceu só depois da 13ª linha, e outra da Janelle Monáe depois da 32ª. Olhei até a 50ª linha e não vi nenhuma pessoa gorda, com deficiência ou velha. Não só a indústria da moda, mas a publicitária num geral (sendo capitalista, racista, gordofóbica, capacitista, cissexista, misógina) sempre apresentou a androginia dessa forma. Mas isso significa que, quando você imagina uma pessoa trans não-binária, tudo o que você vê são pessoas brancas, magras, sem deficiência e ricas? Volte 89 casas.

Todas as pessoas se apresentam da forma que melhor as representa, a não ser quando estão sob algum tipo de coação — direta ou social. Pessoas trans não-binárias vão procurar se apresentar da maneira que melhor as representa também, e isso muitas vezes inclui se apresentar de um jeito que não seja fácil ou automático determinar se aquela pessoa é "homem ou mulher", ou seja, de forma andrógina, porque isso vai externalizar o que elas pensam sobre si mesmas. Isso não significa que todas desejemos nos apresentar da mesma forma, e também não significa que todas as pessoas trans não-binárias que são andróginas caibam nos padrões estéticos ocidentais estabelecidos e que são quase sempre associados à androginia, começando pelo fato de que ser trans em si já é algo que escapa a esses padrões. Pessoas trans não-binárias não são todas andróginas (lógica, saudades) — muitas de nós se apresentam de forma mais comumente interpretada como feminina ou masculina. E não existem apenas pessoas trans não-binárias brancas, magras, de pouca idade, sem deficiência e em boa condição financeira.


Resumindo: esse grupo de pessoas é diverso. Se a forma como esse grupo é representado apresenta falhas, essas falhas existem pelo mesmo motivo que existem falhas na representação de, por exemplo, mulheres periféricas no feminismo, na representação de lésbicas e pessoas bissexuais (trans ou cis) ou de pessoas negras e indígenas no movimento LGBT, ou na representação de quaisquer mulheres e outras pessoas trans na esquerda como um todo.

“Pessoas trans não-binárias não realizam CRS e TH, nem pretendem alterar os documentos”

Antes de qualquer coisa: você quer dizer que toda pessoa trans, binária ou não-binária, tem por obrigação querer fazer terapia hormonal, cirurgias e alteração de documentos na justiça, caso contrário não é trans? E você não vê como ser contra uma Narrativa Legítima Única para pessoas trans binárias e exigi-la de pessoas trans não-binárias é binarismo? Desculpa, colega, mas cê tá falando bosta.

Se for pra levar todos os critérios estabelecidos na categoria de “transtorno de identidade sexual” à risca, metade das pessoas que se assumem trans não é trans de verdade — enquanto isso, uma mulher cis pode usar roupas vendidas na seção masculina, assim como um homem cis pode usar cabelo comprido, e isso não tira os status delas de mulher e de homem, respectivamente.

Pois bem. Já aconteceu com você, ou você já ouviu falar de alguma pessoa trans binária que frequentou psicólogo e psiquiatra por semanas, meses ou até anos e teve o laudo atestando a transexualidade dela negado porque ela não se encaixa perfeitamente nos critérios estabelecidos no CID, ou, hell, porque a pessoa cis que a estava atendendo simplesmente “não acha que ela é trans”? E quantas pessoas trans binárias você conhece que conseguiram o laudo porque mentiram sobre algo, omitiram alguma coisa ou disfarçaram um costume que, caso fosse descoberto pela pessoa psi que a estava atendendo, a faria perder o laudo (mesmo que fosse algo como um cara trans fazer a sobrancelha ou uma mina trans sentar de perna aberta)? Eu conheço várias — repito, várias — histórias assim, que inclusive acontecem com a mesma pessoa trans mais de uma vez, e sei que isso ocorre porque pessoas cis exercem controle sobre nosso sexo, nosso comportamento, nossos corpos. E o que você acha que acontece se você entrar num consultório de psicologia ou psiquiatria e disser, “Oi, eu sou Fulane, sou uma pessoa trans não-binária, e preciso de um laudo atestando que eu sou transexual pra iniciar a minha terapia hormonal e alterar o nome que consta nos meus documentos”?

Uma dica sobre o que acontece com os documentos: não dá pra colocar que você é não-binário neles.


Eu tenho certeza também de que se você é uma pessoa trans que passa por problemas relacionados a depressão, ansiedade, fobia social, entre outras questões psicológicas como essas, as chances de você conseguir esse laudo são ainda menores — o que é paradoxal, partindo do princípio de que pessoas trans frequentemente passam por esses problemas justamente por não terem autonomia sobre seus corpos, seus nomes, suas condições financeiras e suas vidas de maneira geral.

Além disso, eu sei que toda pessoa trans não-binária já ouviu ou vai ouvir pelo menos uma vez em sua vida que, se ela quer realizar esses procedimentos, isso significa que ela é mulher ou homem trans, “afinal, pra quê tomar hormônio feminino se você não se considera [exclusivamente] mulher?”, “se você não é [exclusivamente] homem, por quê vai retirar os seios?”, entre outras babaquices binaristas.

Espero que você não tenha perdido a parte sobre como pessoas trans não-binárias são diversas. Sendo assim, não deve ser muito difícil pra você entender que algumas pessoas trans não-binárias pretendem fazer cirurgias, terapia hormonal e alterar documentos, outras pretendem fazer apenas uma ou duas entre essas coisas, outras não pretendem fazer nenhuma delas, e como qualquer pessoa trans, também enfrentam dificuldades pra atingir esses objetivos. Nada disso dá a você o direito de dizer se aquela pessoa é trans “de verdade” ou não, nem é parâmetro pra determinar que essa pessoa não sofre transfobia.


“Pessoas trans não-binárias não sentem disforia”

Cala a boca.

Sério, só cala a boca.

“Pessoas trans não-binárias vivem como cis, passam como cis ou têm privilégio cis”

Godzilla facepalm.

Vou contar um segredo a vocês: todas as identidades cis são binárias. Todas as pessoas no nosso contexto (ocidental de supremacia branca) têm imposto elas um de dois possíveis sexos: homem ou mulher. Desde que eu ouvi falar em “passabilidade cis”, uma coisa ficou nítida pra mim: ter “passabilidade cis” é poder ser uma pessoa vista como sendo do seu sexo, tê-lo validado por gente cis, é poder viver sem que gente cis atribua um sexo diferente do seu a você, se encaixando nos critérios estipulados por elas do que é ser uma mulher ou um homem. Se você é uma pessoa trans e as pessoas não veem você como sendo do seu sexo, isso significa que você não “passa” como cis.


Uma observação sobre "passabilidade cis": passabilidade cis é um efeito da transfobia, é a imposição sobre pessoas trans para que estas se adaptem ao que pessoas cis (e não intersexo) consideram como válido quando se trata de ser homem ou mulher, ou simplesmente uma pessoa.

Ficam as dúvidas: se todas as identidades cis do nosso contexto são binárias e todas as pessoas na nossa sociedade só podem ser mulheres ou homens, como uma pessoa trans não-binária pode "passar como cis"? Se pra uma pessoa trans binária ser vista como sendo de um sexo diferente do dela não é um privilégio, porque seria um privilégio para pessoas trans não-binárias? Por que passar por misgendering o tempo todo é um privilégio?

Eu não sei como uma pessoa trans pode “viver como cis” (assim como não vejo como pessoas trans recebam uma "socialização" cis). Eu diria que isso é impossível a menos que ela esteja no armário, aí me lembrei que uma pessoa trans no armário ainda é uma pessoa trans e pode internalizar e sofrer com diversos problemas decorrentes de transfobia e cissexismo, e também da disforia (caso ela a tenha), mesmo não tendo se assumido publicamente como trans, porque opressão não é algo que possua um canal único, mas sim múltiplas vias — o fato de que aquela pessoa se sente obrigada a esconder que é trans já é uma consequência da transfobia.

Muito se diz que pessoas trans binárias no armário têm privilégio cis quando, no final das contas, na maioria das vezes uma pessoa trans binária pode até não ser vista como sendo, por exemplo, mulher, mas também não é vista como sendo homem — e daí vem o degendering, com o processo de marginalizar uma pessoa porque ela não se encaixa em espaços femininos, nem em masculinos. E mesmo que essa pessoa trans binária seja assumida e “passe como cis” em pelo menos parte do tempo dela, ela ainda provavelmente vai ter que lidar com a transfobia da classe médica, do estado e de qualquer pessoa cis que por acaso saiba que ela é trans. Então repito a pergunta: se isso não é um privilégio pra pessoas trans binárias, por que seria um privilégio pra pessoas trans não-binárias? De que forma é um privilégio pra mim que as pessoas insistam que eu sou uma mulher cis lésbica quando eu não sou mulher, nem monossexual, ou que elas me digam que eu ser do meu gênero é uma frescura ou uma tentativa de chamar atenção, ou que nunca passe pela cabeça delas perguntar se eu uso mesmo tratamento masculino quando eu digo que não uso tratamento feminino, ou que pessoas da minha família façam piadas com a minha transexualidade pelas minhas costas, ou que eu tenha que ouvir que eu “não pareço trans”, ou que eu tenha que me explicar sempre que assino meu nome e pedem meu documento que eu não consegui alterar, ou que eu tenha perdido amigas por causa da transfobia, ou que pessoas psicólogas e psiquiatras tentem convencer todas as pessoas como eu a todo custo de que não somos trans, nos negando a possibilidade de realizar procedimentos aos quais deveríamos ter livre acesso de maneira segura? De que forma isso é viver como cis?





Eu não sei quem espalhou esse boato de que toda pessoa trans não-binária se apresenta de acordo com o sexo que foi imposto a ela quando ela nasceu porque supostamente não deseja realizar os mesmos procedimentos que uma pessoa trans binária costuma desejar, e por isso não vai enfrentar as dificuldades que pessoas trans binárias enfrentam com família, amigos, mercado de trabalho e outras coisas, mas essa pessoa está: errada e precisa voltar ao início.

Nada disso nega que determinadas pessoas trans não vão passar por determinadas violências que outras pessoas trans vão passar, porque pessoas trans não são todas iguais — se somos percebidas de formas diferentes, somos violentadas em aspectos diferentes. Nada disso nega que pessoas trans binárias não são obrigadas lidar com binarismo como pessoas trans não-binárias são.


“A não-binaridade é imaterial pois aqui faz mais sentido ser binário, a não-binaridade é individualista em si”

 Se o que você entende por materialidade é a compreensão da classe opressora a respeito do seu grupo, de fato, não-binaridade não tem materialidade nenhuma, já que a maioria das pessoas cis tem zero noção do que sexo significa realmente, muito menos de onde a não-binaridade de encaixa nisso. Acontece que o seu entendimento de materialidade está, well... errado.

Materialidade não tem a ver com quão compreensível a hegemonia te considera. Tem a ver com a existência ou inexistência de impactos, diretos ou indiretos, na vida de um grupo ou de alguém através de relações sociais. O fato de que há dificuldade na compreensão e "aceitação" da não-binaridade porque ela conflita com a ideia estabelecida do que é o sexo não é o que a torna ou deixa de tornar material, porque materialidade não é uma qualidade das coisas, e sim uma forma de enxergar as coisas. As consequências que pessoas trans sofrem ao revelar que não são binárias possuem consequências reais facilmente constatadas através do materialismo. Se materialidade fosse uma qualidade, e essa qualidade de um grupo dependesse da validação da classe opressora pra existir, pessoas trans que são homens e mulheres também seriam "imateriais", posto que pessoas cis tanto não compreendem quanto não aceitam a existência delas.

Se você, seja lá por que caralhos for, chegou à conclusão de que a não-binaridade se baseia pura e exclusivamente em "sentimentos pessoais" e "subjetividades", cara, o problema é todo seu. Ser trans não-binária não é o que faz de uma pessoa alguém individualista, ou alguém que enxerga sexo/gênero como algo puramente pessoal e subjetivo em vez de também social e estrutural. Pessoas trans binárias e pessoas cis fazem isso muito (muito) frequentemente, e você não vê qualquer pessoa dizer que ser cis é inerentemente liberal — mas com certeza vai encontrar grupos de ódio contra pessoas trans dizendo que ser trans (b ou n-b) é inerentemente liberal e individualista porque "ignora a materialidade" do "sexo (biológico)", como se o próprio conceito de "sexo biológico" não tivesse sido implementado em sociedade, por pessoas de classes dominantes que se beneficiariam desse conceito. Se você quer usar como ponto de partida uma perspectiva "materialista" que não questiona esse conceito, ou como as pessoas lidam com ele, ou como ele domina e regra nossa sociedade, essa merda desse problema também é seu.

Sério, migas, vocês precisam arranjar um jeito de disfarçar essa bostolice hipócrita, binarista e descarada de vocês. 
 

“Vocês nem têm pautas”

Tem uma coisa que eu detesto, e é sonsice. Então parem com essa merda.

Nós somos pessoas trans e nossas pautas são as pautas trans.

Binarismo é transfobia, portanto uma questão trans. Divisões binárias de sexo em todos os lugares, espaços e instituições prejudicando pessoas trans como um todo e muitas vezes também mulheres cis são questões trans. O fim do controle de pessoas cis sobre a vida de pessoas trans através da medicina, maior a representatividade de pessoas de sexos diversos, maior o acesso de pessoas trans ao mercado de trabalho e a instituições de ensino (no país onde 90% das travestis estão em situação de prostituição e onde mais são mortas no mundo, só pra começar), respeito e autonomia de pessoas trans e o fim da imposição de um sexo binário às pessoas a partir do nascimento — tudo isso e muito mais são pautas trans, e pautas trans também são trans não-binárias.

"O seu sexo/gênero não existe, vocês inventaram isso na internet"

 Pessoas trans existem na realidade que a gente conhece desde que existe o que a gente chama de gênero/sexo, e isso inclui pessoas trans não-binárias. Se antes ninguém chamava certas experiências de não-binaridade, isso não significa que a não-binaridade era inexistente — pessoas que não se viam no sexo que foi imposto a elas não passaram a existir só depois que a medicina inventou o termo "transexualidade", assim como gente que se relaciona com pessoas do mesmo sexo já existia antes de chamarem isso de "homossexualidade".

Mas vamos entrar na brincadeira e supor que a não-binaridade seja um fruto recente da internet: o seu sexo ter sido criado uns milhares de anos atrás fora da internet não faz dele algo mais válido e concreto, miga. Só mais antigo e hegemônico. Fora que essa frase é genial por só considerar o modelo ocidental-branco-europeu do que sexo/gênero significa, né? Vou sentar e aguardar vocês aplicarem essa mesma lógica a lugares e grupos de pessoas onde o que a gente entende por sexo/gênero é completamente diferente da nossa realidade, mesmo quando os corpos dessas pessoas são idênticos. Só deixo o aviso de que isso, além de já ter acontecido, tem nome, e é colonização.


Além do mais, se vai começar a brincadeira de "se veio da internet, não vale, não existe ou não presta", metade da vida de vocês vai pro lixo.


΅

Bifobia está pra bissexuais como binarismo está pra pessoas trans não-binárias


Bifobia não somente é ódio contra pessoas bissexuais, como é também a negação e o apagamento da bissexualidade, a hiperssexualização e a fetichização de pessoas bissexuais (especialmente mulheres), entre outras formas de violência direcionadas a essas pessoas por elas serem bissexuais. Binarismo é um tipo de transfobia praticada especificamente contra pessoas trans não-binárias que envolve a negação e o apagamento da não-binaridade, entre outras formas de violência direcionadas a essas pessoas por elas serem não-binárias.

Assim como há no senso comum uma
Narrativa Legítima Única™ imposta a pessoas trans, nele existem também critérios rígidos a respeito de como uma pessoa pode ou não pode se identificar sexual ou afetivamente. A bifobia é posta em prática através de uma lógica binária envolvendo os extremos hétero ←→ homo, assim como o binarismo é posto em prática envolvendo os extremos mulher ←→ homem, pessoas cis e/ou monossexuais tratando essas características como inflexíveis ao invés de fluidas partes de um espetro. Na maioria das vezes, essas violências giram em torno de:

- dizer a uma pessoa bissexual que ela “é hétero, é homo ou está mentindo”, portanto, pode-se agir com violência contra essa pessoa por ela ser bissexual, porque bissexualidade não existe; assim como dizer
a uma pessoa trans n-b que ela “é mulher, é homem, ou está mentindo”, portanto, pode-se agir com violência contra essa pessoa por ela ser trans n-b, porque não-binaridade não existe;

- dizer que uma pessoa bissexual somente sofrerá violência heterossexista caso seja possível “notar” que ela é homossexual, apesar de isso não ser algo que se possa “notar” em alguém e de essa pessoa não ser homossexual, negando, portanto, a existência da bifobia e praticando o apagamento deliberado da bissexualidade; assim como dizer que uma pessoa trans não-binária somente sofrerá cissexismo caso ela “pareça uma pessoa trans [binária]”, mesmo que você não tenha como dizer se uma pessoa é cis, trans binária ou não-binária só de olhar pra ela e de não haver uma forma específica de ser trans pra que "parecer trans" seja possível, negando, portanto, a existência do binarismo e deliberadamente apagando a não-binaridade;


- dizer que não há nada de característico na violência sofrida por bissexuais além do que essas pessoas compartilham com pessoas homossexuais, mesmo que uma pessoa bissexual fosse estar livre de situações violentas específicas caso fosse monossexual; assim como dizer que não há nada de característico na violência na violência sofrida por pessoas trans não-binárias além do que elas já compartilham com pessoas trans binárias, mesmo que uma pessoa trans não-binária fosse estar livre de situações violentas específicas caso fosse binária;


- dizer que pra ser bi você deve se atrair 50% por homens e 50% por mulheres (por que isso é obviamente controlável e só existem dois sexos), caso contrário, você é hétero/homo; assim como dizer que pra ser trans não-binário você precisa ser andrógino, não pode parecer uma pessoa “masculina ou feminina demais”, caso contrário você é homem/mulher;


- dizer que se você é bi, tem privilégio hétero, embora não seja hétero, e se você é trans n-b, tem privilégio cis, embora não seja cis;


- e outras merdas.

Então se você tá aí apontando a existência da bifobia (ou não) enquanto fala tosqueiras binaristas (e bifóbicas): a deusa tá vendo. Eu tô vendo. Tá todo mundo vendo. Só para.


Por fim, entendam uma coisa: nós existimos, não somos pessoas cis, e não somos pessoas trans binárias no armário. Então parem de nos tratar como tal e de espalhar a falta de conhecimento de vocês a respeito da nossa realidade como verdades absolutas.

Quanto mais vocês tentam cercear nossos espaços e nossas vozes dizendo que não somos trans o suficiente pros critérios de vocês, tentando nos fazer duvidar de nós mesmas, mais impera o controle e a assimilação sobre pessoas trans como um todo, e independente do quão ilegítimas como pessoas trans vocês por acaso consigam nos fazer sentir ao disseminar seu binarismo, sempre restará certeza:




sábado, 1 de novembro de 2014

sobre auto-ódio

 Essa é uma resposta que não coube no limite de caracteres do ask.fm.

[Aviso de disparador: auto-ódio, depressão, cissexismo e similares]

Uma pessoa me perguntou por que razão não consegue desconstruir a necessidade de fazer CRS e o motivo de odiar o próprio corpo. Obviamente eu não tenho como saber os motivos específicos dessa pessoa, mas acho que posso ter uma ideia e resolvi dar um exemplo pessoal.

Uma vez eu escrevi uma coisa mais ou menos assim: "Não faça pessoas se sentirem culpadas porque se sentem culpadas por não caberem no padrão". É mais ou menos o ponto dessa resposta.

Eu sou trans, e nos últimos tempos eu engordei pakas. Sei lá. Só uma das minhas calças jeans me serve, e eu sou uma pessoa designada mulher com altas curvas. Minha bunda tá enorme. Quanto mais eu engordo, mais facilmente as pessoas me chamam de "moça" na rua.

[TW | Eu engordei por uma série de motivos que envolvem, entre outros, eu me achar uma bosta fracassada na maior parte do tempo e o fato de que eu associo "trabalhar fora" e "futuro" com suicídio. [edit] Aparentemente comer compulsivamente em crises depressivas ou de ansiedade e situações de stress é um tipo de transtorno alimentar... ]

Quando você é uma pessoa considerada inadequada, há sempre aquele breve momento de conforto em que você descobre algo novo sobre si, e ninguém ainda teve a oportunidade de te dizer que você está errada em ser uma pessoa assim. Depois disso, você começa a ouvir as pessoas dizendo que você está doente, é feio, inapropriado, vulgar, ou qualquer merda desse tipo. Podem não estar falando diretamente a você, mas a gente sabe quando é da gente que falam. O pior não começa nisso. O pior começa quando o número de vozes repetindo a mesma babaquice atinge tal magnitude que a gente passa a dar ouvidos ao que é dito. Então vem ansiedade, insegurança, auto-ódio.

No fundo eu tenho certeza de que eu não deveria me sentir mal por ser como eu sou. Eu sei que as normas que dizem que há uma forma certa de se existir são uma merda e não deveriam estar aí. Tenho absoluta certeza de que o certo seria eu viver num lugar onde eu não sentiria necessidade nenhuma de mudar, porque não haveria coação pra isso, e se eu quisesse mudar, seria por que me deu na telha, e não porque eu me sentiria mal por ser assim ou assado. Mas eu vivo num lugar onde tudo me diz que eu devia ser diferente. A internet, as pessoas que eu vejo na rua, a tv, coisas implícitas em conversas aleatórias, os produtos pelos quais eu passo no supermercado... Então eu tenho essa imagem na minha cabeça de como eu devia ser, especialmente por fora, de forma que ninguém pudesse argumentar que eu sou, que eu meu corpo existe de um jeito errado. Quero dizer, ainda iam dizer isso pra mim porque eu sou uma pessoa trans não-binária bissexual designada mulher, não magra nem de longe, mas meu corpo ia fazer mais sentido, entende?

Quando você se envolve com movimentos sociais como o feminismo, você conhece várias pessoas que dizem exatamente oposto do que você ouviu a sua vida inteira. Que você tem valor, que você não é uma pessoa doente, imprópria, errada, ou feia. Eu mesmo digo pra quem posso, foda-se a beleza. E é bom ouvir essas coisas e ser reassegurado do que você pensava antes de se sentir uma merda: que o problema não tá em você. Que essas normas que se fodam, que elas estão erradas, e não você. Só que eu ainda vivo no mesmo lugar, e continuo ouvindo as mesmas coisas, e mesmo que eu ouça essas pessoas dizendo as coisas que eu preciso ouvir, as mesmas coisas continuam implícitas nas conversas e nos olhares e na fala das pessoas e na tv e na internet e nos produtos das prateleiras do supermercado. Às vezes saber que essa pressão vem de algum lugar, que é injusta e não deveria estar aí, saber que o verdadeiro problema não sou eu, não é suficiente pra abafar a voz de quem diz o contrário — as in todo o resto. Ter ciência dessas coisas não faz com que essas coisas deixem de surtir efeito em mim. Se fosse algo parecido com "Ah, tá, já descobri tudo, é culpa do patriarcado, então tá tudo certo e agora eu me sinto bem, toda a merda magicamente desapareceu" seria muito mais fácil. Mas não é assim que funciona.

É por tudo isso que chega o momento que fode mais. Eu sei dessas coisas, e eu sei delas há um tempo. Mas eu ainda me sinto mal. Com meu corpo, com certas ansiedades, com a minha inabilidade de viver da forma como a maioria das pessoas acha que é correto. E sei que mesmo que eu queira mudar algo porque deu na telha, boa parte do que eu quero mudar tá diretamente ligada à forma como outras pessoas me percebem e ao que o meu corpo significa no meio em que eu vivo, e como isso não me traduz e não me define, ou me define da forma errada entre todas essas normas e estruturas onde o menor elemento pode ter um significado gritante. E sabendo que eu querer mudar certas coisas é culpa do cissexismo, da misoginia, da gordofobia, etc, eu me sinto mal porque eu não deveria me render a essas coisas, eu não devia concordar com elas; eu me sinto hipócrita. Quem sou eu pra falar que essas estruturas não prestam e que eu tenho que ter autonomia independente delas se eu nem consigo impedir a influência delas sobre mim, se eu ainda tento me adequar a elas? Quem sou eu pra falar de feminismo e transfobia se eu ainda tô tentando caber dentro de noções cissexistas, binaristas, misóginas, gordofóbicas, higienistas, etc? Eu me sinto uma fraude. Eu sinto culpa por sentir culpa por não caber nessas noções. Geralmente, é nessa hora que vem aquelas pessoas super massa dizer em alto e bom som pra qualquer pessoa que passe por algo parecido coisas como: "É feminista, mas se depila", "É militante antirracista e alisa o cabelo", "É contra a transfobia, mas quer ter 'passabilidade cis'", "É militante LGBT, mas ainda tá no armário pra família/colegas de trabalho", "Fala de bodypositive, mas quer emagrecer".

Empatia manda beijos

Então o que eu posso dizer é que há coisas que a gente não pode simplesmente controlar da forma como gostaríamos. Instinto de sobrevivência — a gente cede a uma coação pra sofrer a menor quantidade de violência possível. Auto-ódio — produto de uma vida inteira ouvindo que você tá existindo do jeito errado. Mas o que importa é saber que a culpa disso não é sua. Não é culpa sua que essas normas existam, nem que você sinta necessidade de se encaixar nelas, nem que você nem sempre tenha a força necessária pra abandonar essa necessidade. Você não tem obrigação de ser forte, muito menos ser forte sempre, especialmente quando na maior parte do tempo, quando se trata de se ver e se entender, a batalha é você contra o mundo, não importa quantas pessoas estejam ali pra te apoiar e contrariar as babaquices. Também não é culpa delas que o apoio delas não baste sempre.

Então, se você não consegue deixar de odiar o seu corpo e se sente mal por isso, não é culpa sua, e você não tem prazo pra cumprir. Você só precisa saber. Saber que você não é odiável, e que você não tem obrigação de mudar, que você sequer tem obrigação de ser uma pessoa bonita ou qualquer coisa parecida — eu já disse isso antes, foda-se a beleza. Que você não é uma pessoa fútil ou fraca por não estar imune a todas essas coações. Eu sei dessas coisas, eu sei que eu não preciso me sentir mal só por ser de determinada forma (esteticamente ou mentalmente ou que seja), e eu tento transmitir isso pro maior número de pessoas que eu puder. Mas mesmo assim eu não consigo evitar me odiar, querer mudar, e depois me sentir mal por me sentir mal só por ser eu. Eu não consigo deixar os sinais implícitos de que eu sou uma pessoa  inadequada passarem batido, independente do tamanho da minha certeza de que a culpa não é minha e o que há de errado aqui não sou eu. Eu só tento manter essa certeza em mente pra que auto-ódio não seja tudo o que eu tenho e pra que um dia ela me baste pra abandoná-lo ou exterminá-lo, ainda que gradativamente. E se você quiser mudar algo, e se isso te parecer vital e for fazer você se sentir melhor, você tem a liberdade pra fazer isso sem receber censura. Apenas faça o seu melhor e tenha essa certeza.


Esse é o melhor que eu tenho agora. Espero que você fique bem. Beijos e força.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

sobre o potencial de estuprar

[Aviso de disparador: este texto fala de estupro e aborda abuso sob a perspectiva de como pessoas são afetadas por uma cultura misógina e heterossexista que naturaliza abusos]

Uma pessoa me perguntou no meu ask.fm se eu conhecia algum texto que abordasse o conceito de que todo homem é um estuprador em potencial. Como eu não conhecia nenhum texto específico a respeito, eu dei a explicação a seguir, com algumas modificações.

Quando dizemos que homens cis são estupradores em potencial, eles geralmente não compreendem o que queremos dizer com isso. Eles interpretam essa frase como uma acusação, um ataque pessoal. No entanto, esta é uma questão social, coletiva, referente à forma como pessoas designadas mulheres e pessoas designadas homens ao nascer são criadas na nossa sociedade.

A diferença entre a educação que a maioria das pessoas recebe de acordo com o sexo delas ou que foi designado a elas é óbvia. Basicamente, o homem cis é criado pra ser forte e conquistar coisas; há toda uma gama de coisas que ele é incentivado a explorar e que mulheres são incentivadas a esconder ou reprimir, então esse se torna o papel do homem cis — ele tem que ser macho, e ser macho é basicamente ser dominador, o que invariavelmente significa agir (também) com agressividade, em suas diversas formas. Pra ficar bem explícito: não, não significa que 100% de todos os homens cis do planeta sejam agressivos e violentos. Uma pessoa pode ser ensinada a se comportar de uma forma e ainda assim acabar desenvolvendo uma personalidade completamente diferente do que é esperado dela. O que isso significa é que na nossa sociedade 100% deles é incentivado a ser agressivo e dominador e isso vai ter um impacto neles de uma forma ou de outra. Mas o ponto crucial aqui referente a esse assunto é que o homem cis, obviamente criado pra ser heterossexual, é incentivado a explorar e até exibir a sua sexualidade o que inclui coisas super úteis e importantes como se gabar de fazer sexoe a conseguir sexo. Pense nisso: conseguir sexo.



A mulheres e pessoas designadas mulheres é ensinado o contrário. Mulher agressiva é feio. Mulher ambiciosa é feio. Mulher que transa é pior ainda — e aí é que você enxerga um problema em ensinar uma parte da população a conseguir sexo e sexualizar a qualquer custo e a outra a evitar ser sexual. Mas uma das partes mais importantes: quando não se aprende a defender-se de forma incisiva, quando agressividade é algo fora dos limites pra você, quando não é esperado que você esteja no comando de qualquer coisa, fica difícil aprender a dizer não. Em meio à cultura do estupro, nós somos as pessoas ensinadas a ter medo dos homens. Pode parecer estranho quando colocado dessa forma, mas quando você passa sua vida inteira ouvindo sobre como é perigoso beber demais na companhia de homens, ficar sozinha com homens, pegar carona com eles, até mesmo cruzar com eles numa rua deserta, ou simplesmente confiar neles, é isso que você sente: medo. Isso, entre outros elementos da nossa cultura misógina, definitivamente não ajuda uma pessoa a ser assertiva ou a exigir o respeito que merece, a possuir a mesma tenacidade e confiança incentivadas a homens cis, em especial os heterossexuais e brancos.

No texto em inglês que eu linkei no trecho "uma concepção deturpada e extremamente tendenciosa do que é estupro" deste texto, 1882 homens cis responderam a perguntas pra uma pesquisa. Nessa pesquisa, pessoas perguntaram a eles se eles já haviam estuprado alguém sem usar a palavra "estupro", como em "Você já fez sexo com alguém depois de usar força ou ameaça?". 120 admitiram que sim. Mas se perguntassem a eles se eles já estupraram alguém, eles diriam que não — porque eles não acham (ou se recusam a admitir) que aquilo foi estupro.

O que isso significa? Que estupro foi naturalizado. Por "naturalizado" eu quero dizer que homens cis não aprendem o que de fato constitui estupro, de forma que quando alguém os encoraja a estuprar alguém (como numa situação em que uma das partes não está sóbria, por exemplo, ou "cedeu" após a grande insistência que foi ensinada a eles em primeiro lugar porque eles têm que conseguir sexo), eles provavelmente veem essa atitude como perfeitamente natural, e também quero dizer que as pessoas sabem que homens agem dessa forma porque elas mesmas reforçam esse pensamento o tempo todo, mesmo quando não chamam isso de estupro, e mesmo quando não percebem que estão repetindo essa ideia, porque essa é uma questão cultural muito enraizada.

Nós quase inacreditavelmente agimos como se homens naturalmente estuprassem, como se isso fosse da índole deles, afinal boys will be boys, e além: agimos como se eles estuprassem para corrigir o comportamento das mulheres cuja conduta não é considerada aceitável pra uma mulher, ou seja, "ela foi estuprada porque é uma puta", ou "porque estava usando uma roupa curta demais", ou "porque ela estava desacompanhada", ou porque "aceitou ir até tal lugar sozinha com fulano", e, sendo assim, ela mereceu, ou ela é a culpadae além disso procuramos diversas atenuações pra estupros o tempo todo, dizendo que ela não foi estuprada "de verdade", ela "só estava um pouco bêbada", "só disse não de início", "eles se conheciam" ou "eram amigos", "ela era namorada/esposa dele", ou alguma escrotice similar, como se a vasta maioria dos estupros não fosse cometida por conhecidos ou parentes (vá em frente e faça uma rápida pesquisa pra constatar que a grande maioria dos estupradores são conhecidos de suas vítimas).

Veja bem, ao invés de dizer pros meninos cis pra não incomodarem meninas sozinhas, não tocarem nelas se elas estiverem bêbadas, não se sentirem no direito de tocar o corpo delas por que elas estão com uma roupa curta, enfim, ao invés de deixar claro que homens não têm livre acesso ao corpo delas, as pessoas dizem pras meninas não provocarem os meninos. 



É como ensinar pra uma menina que isso é o que homens cis fazem, e que isso é inevitável, portanto cabe a essa menina (ou pessoa designada menina) a responsabilidade de evitar colocar a si mesma em situações em que homens cis sintam vontade de fazer sexo com ela, porque se eles sentirem essa vontade, eles farão e ela não poderá impedi-los — ou ainda, que cabe a ela não contrariar a lei dos homens (não seja agressiva, não flerte, não tenha amigos homens demais, não transe demais, não beba demais, não assuma ter plena propriedade sobre seu corpo), pois estupro é um corretivo. É isso que está implícito nessa educação num contexto social. Homens cis são educados pra estuprar, porque não são educados pra entender o que viola a autonomia e o consentimento de alguém, porque numa sociedade misógina o consentimento de mulheres e outras pessoas trans é irrelevante  e as pessoas agem como se estupro fosse natural, instintivo, inevitável da parte deles, porque eles têm sido educados assim há muito tempo (e ao falar de educação não me refiro simplesmente a pais e responsáveis, mas todo o conjunto de fontes de informação que temos ao longo de toda uma vida, o que inclui o que você consome, por exemplo, na mídia).

É assim que, conscientemente ou não, você chega à conclusão de que... é isso. Homens estupram, tome cuidado, você pode ser a próxima vítima. Ouvimos essa mensagem implícita sempre que alguém nos manda tomar cuidado quando estamos prestes a ter contato com um homem. Mas de repente isso é demais? Podemos passar toda uma vida ouvindo que lidar com homens cis é um risco, que ter contato com eles é perigoso, e quando dizemos que eles são estupradores em potencial, isso de repente se torna ofensivo? Ora, o foco deveria estar no problema estrutural da nossa sociedade misógina, e não nas vítimas de misoginia que enxergam e falam nada menos que a verdade.

Mas afinal, dizer isso de alguma forma significa que absolutamente todo indivíduo homem cis deliberadamente vê mulheres como seres inferiores e vai estuprá-las mesmo porque acha que elas merecem e foda-se? Não (tá, tá, "nem todo homem", a gente já entendeu), inclusive porque misoginia não se resume a atos explícitos e deliberados de violência física, pois opressão é algo muito mais complexo que isso. Significa que a educação misógina que eles recebem traz essa possibilidade (e dependendo do ponto de vista, a probabilidade), portanto, homens cis são estupradores em potencial. Individualizar um problema que é inerentemente coletivo, tratar algo social como um ataque pessoal, não vai te fazer parecer menos ameaçador. A própria sociedade como um todo já ensina homens cis a estuprar e ensina mulheres que homens cis estupram — interromper o debate a respeito pra trazer a atenção geral pro fato de que você "é um cara legal" não anula essa verdade a respeito do meio em que vivemos.

E aí, fica a pergunta: por quê o alvoroço? Porque numa sociedade regrada pela misoginia, torna-se instintivo negar a própria da misoginia, e não há maior prova do que a epidemia de estupros e como as pessoas lidam com isso.

Lembrando: isso não é ensinado somente na infância ou pelos pais. Isso é o que chamamos de "cultura do estupro" e é reafirmado e perpetuado constantemente por causa da forma como a sociedade, em especial homens cis, lidam com o sexo. Digo isso pra lembrar que mulheres trans e outras pessoas trans que assim possam ser vistas, quer tenham se apresentado assim desde a infância ou não, estão inseridas num contexto onde também aprendem a temer homens cis e são assimiladas por essa mentalidade, temendo duplamente: porque há a misoginia e há também a transfobia.

É claro que ao olhar pra essa situação por uma perspectiva individual pode levar um homem cis a se sentir ofendido. Acontece que isso não é sobre um homem cis. É sobre o panorama geral em que homens cis estão inseridos. É praticamente uma receita: junte "homem cis é ensinado a conseguir sexo" com "mulheres e outras pessoas trans são ensinadas a temer homens cis" e uma cultura misógina que pressupõe o consentimento automático de mulheres e não somente ensina que homens cis devem e têm direito a fazer sexo com elas como também repetidamente ajuda a encobrir abusos e você tem uma classe, um grupo de indivíduos que são estupradores em potencial, não porque são "malvados" ou qualquer besteira como essa, mas porque eles foram criados nesse contexto misógino onde eles "não sabem" o que define estupro, porque foi ensinado a eles que aquela atitude é aceitável, ou simplesmente acham que estuprar é aceitável — há homens que pensam que estupro é inclusive necessário, e se eu dissesse que foram poucos os que eu vi afirmando isso, estaria mentindo.

Numa sociedade onde estupro é considerado algo natural, é inevitável que exista culpabilização da vítima. Uma prática comum entre homens cis é dizer que "mudar a vestimenta é um dos cuidados a serem tomados contra estupros". O que eles dizem, mesmo que não percebam, é que, se uma mulher fizer a coisa certa, não será estuprada. Não somente essa é uma das maiores mentiras já contadas na história, como isso significa que estupro é uma forma de controle (como já citado no texto). "Faça o que eu digo e não será estuprada", é o que isso significa. Acontece que mesmo quando mulheres fazem o que é dito pra elas, elas são estupradas de qualquer maneira. Deixar de usar certo tipo de roupa, andar somente em determinadas ruas, falar somente com pessoas específicas, nunca andar desacompanhada à noite, nada disso impede uma mulher de ser estuprada. Pra citar um tweet de @DavidWanjiru: "Saiba disso: tudo o que você disser que mulheres devem ou não devem fazer pra evitar estupros, elas já seguiram esse conselho e foram estupradas mesmo assim"

Incumbir a vítima de evitar uma violência que será perpetrada contra ela é inaceitável. Sempre será inaceitável. Isso é culpabilização da vítima e nada mais. É dizer que temos culpa quando nos estupram, como se homens não pudessem evitar estuprar e a nossa função fosse evitar ser a próxima vítima, porque homens "de verdade", que "são poucos", não estupram, quem estupra são os "doentes", e com esses apenas não há o que fazer.

Acontece que estuprar não é inevitável, e estupro não é coisa de doente (capacitismo manda beijos). Estuprar é algo que homens cis fazem porque são imersos em misoginia pela nossa sociedade, porque nem sequer sabem que aquilo é estupro, ou quando sabem ou acham que não serão pegos, e quando sabem que se forem pegos haverá quem os defenda.

Não há nada de tão admirável em ser homem cis que torne um homem cis que estupra menos homem ou "homem de mentira". Estupradores são homens de verdade, nada além de crias saudáveis do patriarcado. Estupro não é algo inevitável ou instintivo. É uma violência misógina largamente usada como arma de opressão contra as vítimas de misoginia que não admitem ser submetidas. Você pode querer discordar, mas não é à toa que homens cis ameaçam mulheres feministas de estupro constantemente.

Nós, que passamos por misoginia, já tomamos os cuidados que nos aconselharam a tomar, porque sentimos medo. Nós já trocamos nossas roupas, já evitamos sair muito tarde, já evitamos beber demais em festas, anotamos a placa do táxi, procuramos andar com companhia, andamos com as chaves de casa entre os dedos no caminho entre o ponto de ônibus e o portão de casa, porque sentimos medo, e quando não fazemos essas coisas corremos o risco de pagar um grande preço. Não precisamos que homens cis nos digam mais uma vez o que nós passamos a vida ouvindo: que homens cis estupram. O que precisamos é que eles parem de encontrar desculpas para os estupros cometidos de forma a isentar o estuprador ou a negar a existência da misoginia. Não há meio de fazer isso. Não enxerga quem não quer. Nega a misoginia e a transmisoginia quem não a sofre e se beneficia dela. E não existe, nunca existiu, nem nunca existirá atenuante, justificativa ou relativização coerente e verdadeira para estupro.

Se homens cis são seres humanos num estágio pré-evolutivo e desprovidos de raciocínio suficiente para não estuprar porque, à vista de uma pessoa que lhes pareça atraente, é impossível para eles não violentá-la porque estupro é instintivo, não deveríamos estar tendo esta conversa. Deveríamos estar pensando em meios de mantê-los longe de suas vítimas e futuras vítimas. Mas sabemos que a epidemia de estupros não ocorre porque a classe dos homens cis é toda "doente". Ela ocorre porque homens cis são misóginos, e misoginia definitivamente não é um fato imutável da natureza.

O que falta aqui é termos uma sociedade que se empenhe mais em ensinar homens cis a não estuprar do que em ensinar vítimas de misoginia e transmisoginia a não serem estupradas. Que passe a ensinar homens cis a respeitar os limites, as vontades e os corpos das pessoas com quem eles se relacionam ou desejam se relacionar. Que pare de inventar desculpas pra isentar homens dos estupros que eles cometem. Que pare de nos dizer pra parar de viver pra que isso não provoque nos homens cis a vontade de nos estuprar.

A culpa não é, nunca foi, nunca será nossa.