sábado, 1 de novembro de 2014

sobre auto-ódio

 Essa é uma resposta que não coube no limite de caracteres do ask.fm.

[Aviso de disparador: auto-ódio, depressão, cissexismo e similares]

Uma pessoa me perguntou por que razão não consegue desconstruir a necessidade de fazer CRS e o motivo de odiar o próprio corpo. Obviamente eu não tenho como saber os motivos específicos dessa pessoa, mas acho que posso ter uma ideia e resolvi dar um exemplo pessoal.

Uma vez eu escrevi uma coisa mais ou menos assim: "Não faça pessoas se sentirem culpadas porque se sentem culpadas por não caberem no padrão". É mais ou menos o ponto dessa resposta.

Eu sou trans, e nos últimos tempos eu engordei pakas. Sei lá. Só uma das minhas calças jeans me serve, e eu sou uma pessoa designada mulher com altas curvas. Minha bunda tá enorme. Quanto mais eu engordo, mais facilmente as pessoas me chamam de "moça" na rua.

[TW | Eu engordei por uma série de motivos que envolvem, entre outros, eu me achar uma bosta fracassada na maior parte do tempo e o fato de que eu associo "trabalhar fora" e "futuro" com suicídio. [edit] Aparentemente comer compulsivamente em crises depressivas ou de ansiedade e situações de stress é um tipo de transtorno alimentar... ]

Quando você é uma pessoa considerada inadequada, há sempre aquele breve momento de conforto em que você descobre algo novo sobre si, e ninguém ainda teve a oportunidade de te dizer que você está errada em ser uma pessoa assim. Depois disso, você começa a ouvir as pessoas dizendo que você está doente, é feio, inapropriado, vulgar, ou qualquer merda desse tipo. Podem não estar falando diretamente a você, mas a gente sabe quando é da gente que falam. O pior não começa nisso. O pior começa quando o número de vozes repetindo a mesma babaquice atinge tal magnitude que a gente passa a dar ouvidos ao que é dito. Então vem ansiedade, insegurança, auto-ódio.

No fundo eu tenho certeza de que eu não deveria me sentir mal por ser como eu sou. Eu sei que as normas que dizem que há uma forma certa de se existir são uma merda e não deveriam estar aí. Tenho absoluta certeza de que o certo seria eu viver num lugar onde eu não sentiria necessidade nenhuma de mudar, porque não haveria coação pra isso, e se eu quisesse mudar, seria por que me deu na telha, e não porque eu me sentiria mal por ser assim ou assado. Mas eu vivo num lugar onde tudo me diz que eu devia ser diferente. A internet, as pessoas que eu vejo na rua, a tv, coisas implícitas em conversas aleatórias, os produtos pelos quais eu passo no supermercado... Então eu tenho essa imagem na minha cabeça de como eu devia ser, especialmente por fora, de forma que ninguém pudesse argumentar que eu sou, que eu meu corpo existe de um jeito errado. Quero dizer, ainda iam dizer isso pra mim porque eu sou uma pessoa trans não-binária bissexual designada mulher, não magra nem de longe, mas meu corpo ia fazer mais sentido, entende?

Quando você se envolve com movimentos sociais como o feminismo, você conhece várias pessoas que dizem exatamente oposto do que você ouviu a sua vida inteira. Que você tem valor, que você não é uma pessoa doente, imprópria, errada, ou feia. Eu mesmo digo pra quem posso, foda-se a beleza. E é bom ouvir essas coisas e ser reassegurado do que você pensava antes de se sentir uma merda: que o problema não tá em você. Que essas normas que se fodam, que elas estão erradas, e não você. Só que eu ainda vivo no mesmo lugar, e continuo ouvindo as mesmas coisas, e mesmo que eu ouça essas pessoas dizendo as coisas que eu preciso ouvir, as mesmas coisas continuam implícitas nas conversas e nos olhares e na fala das pessoas e na tv e na internet e nos produtos das prateleiras do supermercado. Às vezes saber que essa pressão vem de algum lugar, que é injusta e não deveria estar aí, saber que o verdadeiro problema não sou eu, não é suficiente pra abafar a voz de quem diz o contrário — as in todo o resto. Ter ciência dessas coisas não faz com que essas coisas deixem de surtir efeito em mim. Se fosse algo parecido com "Ah, tá, já descobri tudo, é culpa do patriarcado, então tá tudo certo e agora eu me sinto bem, toda a merda magicamente desapareceu" seria muito mais fácil. Mas não é assim que funciona.

É por tudo isso que chega o momento que fode mais. Eu sei dessas coisas, e eu sei delas há um tempo. Mas eu ainda me sinto mal. Com meu corpo, com certas ansiedades, com a minha inabilidade de viver da forma como a maioria das pessoas acha que é correto. E sei que mesmo que eu queira mudar algo porque deu na telha, boa parte do que eu quero mudar tá diretamente ligada à forma como outras pessoas me percebem e ao que o meu corpo significa no meio em que eu vivo, e como isso não me traduz e não me define, ou me define da forma errada entre todas essas normas e estruturas onde o menor elemento pode ter um significado gritante. E sabendo que eu querer mudar certas coisas é culpa do cissexismo, da misoginia, da gordofobia, etc, eu me sinto mal porque eu não deveria me render a essas coisas, eu não devia concordar com elas; eu me sinto hipócrita. Quem sou eu pra falar que essas estruturas não prestam e que eu tenho que ter autonomia independente delas se eu nem consigo impedir a influência delas sobre mim, se eu ainda tento me adequar a elas? Quem sou eu pra falar de feminismo e transfobia se eu ainda tô tentando caber dentro de noções cissexistas, binaristas, misóginas, gordofóbicas, higienistas, etc? Eu me sinto uma fraude. Eu sinto culpa por sentir culpa por não caber nessas noções. Geralmente, é nessa hora que vem aquelas pessoas super massa dizer em alto e bom som pra qualquer pessoa que passe por algo parecido coisas como: "É feminista, mas se depila", "É militante antirracista e alisa o cabelo", "É contra a transfobia, mas quer ter 'passabilidade cis'", "É militante LGBT, mas ainda tá no armário pra família/colegas de trabalho", "Fala de bodypositive, mas quer emagrecer".

Empatia manda beijos

Então o que eu posso dizer é que há coisas que a gente não pode simplesmente controlar da forma como gostaríamos. Instinto de sobrevivência — a gente cede a uma coação pra sofrer a menor quantidade de violência possível. Auto-ódio — produto de uma vida inteira ouvindo que você tá existindo do jeito errado. Mas o que importa é saber que a culpa disso não é sua. Não é culpa sua que essas normas existam, nem que você sinta necessidade de se encaixar nelas, nem que você nem sempre tenha a força necessária pra abandonar essa necessidade. Você não tem obrigação de ser forte, muito menos ser forte sempre, especialmente quando na maior parte do tempo, quando se trata de se ver e se entender, a batalha é você contra o mundo, não importa quantas pessoas estejam ali pra te apoiar e contrariar as babaquices. Também não é culpa delas que o apoio delas não baste sempre.

Então, se você não consegue deixar de odiar o seu corpo e se sente mal por isso, não é culpa sua, e você não tem prazo pra cumprir. Você só precisa saber. Saber que você não é odiável, e que você não tem obrigação de mudar, que você sequer tem obrigação de ser uma pessoa bonita ou qualquer coisa parecida — eu já disse isso antes, foda-se a beleza. Que você não é uma pessoa fútil ou fraca por não estar imune a todas essas coações. Eu sei dessas coisas, eu sei que eu não preciso me sentir mal só por ser de determinada forma (esteticamente ou mentalmente ou que seja), e eu tento transmitir isso pro maior número de pessoas que eu puder. Mas mesmo assim eu não consigo evitar me odiar, querer mudar, e depois me sentir mal por me sentir mal só por ser eu. Eu não consigo deixar os sinais implícitos de que eu sou uma pessoa  inadequada passarem batido, independente do tamanho da minha certeza de que a culpa não é minha e o que há de errado aqui não sou eu. Eu só tento manter essa certeza em mente pra que auto-ódio não seja tudo o que eu tenho e pra que um dia ela me baste pra abandoná-lo ou exterminá-lo, ainda que gradativamente. E se você quiser mudar algo, e se isso te parecer vital e for fazer você se sentir melhor, você tem a liberdade pra fazer isso sem receber censura. Apenas faça o seu melhor e tenha essa certeza.


Esse é o melhor que eu tenho agora. Espero que você fique bem. Beijos e força.

Um comentário:

  1. Ando entrei pensei em wue tava escrito "auto ocio"... Depois li direito LOL



    Mas é realmente isso, as pessoas ficam com isso martelando na cabeça, nao se aceitam... Isso que mais me tortura nesta sociedade.... Somos todos "programados" para os padroes que nos impõem...

    E se nos deixar levar estamos cavando o túmulo da nossa felicidade.

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