quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Tony Sawicki e Representatividade Trans

Esta é a tradução da junção de quatro postagens originalmente publicadas por Dawson sobre o personagem Tony da série mais sensacional de todos os tempos Orphan Black. Contém spoilers.


Várias pessoas disseram ter se sentido desconfortáveis com a dinâmica Felix/Tony (Felony [em inglês, "felonia", "crime grave"]... Heeey, esse é melhor nome de ship de todos!). Eu compreendo perfeitamente, e vocês são absolutamente livres pra se sentir como estão se sentindo. Eu não acho nem um pouco que as pessoas que escreveram a série estavam pensando em qualquer coisa além de testar limites com essa interação, então tenho praticamente certeza de que ela foi criada pra nos fazer contrair um pouco. O Tony poderia facilmente não ter qualquer interesse pelo Felix. Mas eu fiquei feliz que isso aconteceu, porque nos trouxe coisas que eu considero muito importantes:


Questões de Identidade


Nós passamos a série inteira vendo (e não apenas ouvindo falar sobre) identidade. Eu amo trabalhos criativos que propõem perguntas e essa série é especialista nisso. Então aqui vai a pergunta, #cloneclub: se "there's only one of me" ["só há uma de mim", como disse Sarah Manning no 7º episódio da 1ª temporada], por que nos incomodamos com a ideia de o Tony e o Felix ficando um com o outro? Eles são duas pessoas diferentes. Não têm qualquer parentesco. Então o que é que tem em Felony que nos causa constrangimento?

As pessoas que escreveram a série nos deram uma boa quantidade de falas pra começar a sacar isso. "Você é igualzinho à minha irmã", "você não tem nada que eu já não tenha visto antes", "ele tem todos os seus defeitos". Essas falas são expressões do desconforto do próprio Felix com o interesse de Tony e (ouso dizer) do interesse dele no Tony. Essa série... Essa série, cara. É tudo sobre mostrar que identidade tem, na verdade, muito pouco a ver com a nossa aparência, que somos mais que a nossa genética. Ela é um fator, mas não o fator. Porém a série nos lembra de novo e de novo que nós temos dificuldade pra acreditar nisso. Que a nossa aparência diz muito sobre quem somos.

E os problemas do Felix com relação aos próprios sentimentos e as investidas do Tony são realmente sobre nos lembrar de que mesmo o Felix (e mesmo nós), que fez parte do emaranhado do clone club desde o primeiro dia, tem dificuldade de separar o Tony da Sarah, de vê-lo como um indivíduo totalmente à parte e completo que tem nada a ver com a irmã dele. Mas ele pode sentir isso. E essa é uma declaração poderosa a respeito de identidade.

Um Homem Trans Gay ou Bi



Ok, eu nem sequer tenho certeza de que acabei mesmo de ver um homem trans numa série de TV (e acredite, essa é uma coisa da qual eu lembraria). Mas não para por aí: gênero e sexualidade são duas árvores que crescem uma ao lado da outra, suas raízes embaraçadas, empurrando uma à outra nessa ou naquela direção, elas crescem dentro de você. E Orphan Black foi tipo: "Yup, não vamos fingir que essas coisas não estão claras nem são simples".

Mostrar um homem trans na televisão já é maravilhoso, mas mostrar um homem trans bi ou gay? Simplesmente fodástico. E além de tudo, ter o Felix tratando ele da forma como ele trata. Eu tenho quase certeza (foi meio murmurado) que o Fe num determinado momento diz: "Your bit of T didn't schock me either, Tony" ["A sua testosterona também não me chocou, Tony"]. Todas as hesitações do Felix giram em torno de ele ser um clone. Ele nem pisca ao ver que o Tony é trans. Quão foda e lindo é isso? Na TV, ter esse poderoso personagem gay demonstrar interesse por um cara trans e achar nada demais? Isso é ótimo.


Material Para A Trama do Felix

Eu tô curioso demais pra saber o que vai acontecer com o Tony, menos pelo próprio Tony (apesar de que, sim, é incrível ter representatividade na TV) e mais por como ele pode influenciar e impactar a história do Felix. Eu só consigo imaginar a confusão turbulenta na cabeça do Felix agora e não posso esperar pra ver mais.


Normalizando Homens Trans Em Orphan Black


Com personagens trans há toda uma marca sobre eles que tem sempre, sempre me deixado louco: nada sobre eles parece ser considerado "normal". Claro, dada nossa cultura, introduzir um personagem trans num programa de TV significa responder algumas perguntas sobre como é ser trans, sobre como "tudo isso" funciona, mas na minha experiência isso é tudo o que é representado sobre pessoas trans. Outras histórias a) não são tão bem contadas, muita coisa fica faltando quando o foco da história é a transexualidade e b) acaba parecendo que todas as histórias pelas quais passamos são sobre ser trans.

Aí Orphan Black apresenta esse tal personagem Tony e ele subverte tudo isso, enquanto provê um pano de fundo e um veículo pra mostrar elementos importantes sobre ser trans. A história dele não é sobre isso, mas certamente serve de veículo pra falar a respeito. Normalizando o dia a dia de uma pessoa trans essa série simplesmente acabou com meu coração. Eu não sabia que precisava disso até ver. As coisas que me surpreenderam:



1. Binding e packing: Vemos as duas coisas na tela mais de uma vez. Não são feitos comentários nem observações a respeito (uma cena é filmada de forma que a gente possa ver que ele está fazendo packing). São simplesmente partes da vida do Tony. Isso dá a pessoas cis um vislumbre do dia a dia de pessoas trans sem fazer disso o centro da história. Normalizam essas coisas de uma forma que fazer alvoroço sobre elas nunca poderia.

2. Testosterona: Eu literalmente nunca tinha visto isso na TV. Nenhuma vez. E esse é algo regular na vida da maioria dos homens trans. Está incorporado em quem a maioria de nós é. A fala do Tony, "toda semana, não importa o quê", diz muito num pequeno pedaço de diálogo sobre realidade incorporada à transexualidade dele. Essa é a vida dele. Sem falha. Interessante é que o Tony usa isso pra arrancar uma reação do Felix, ele cutuca e testa e possivelmente está tentando descobrir se o Felix vai tratá-lo como uma aberração (eu sei que eu frequentemente recebi essa reação a algo tão normal pra mim de pessoas que não têm familiaridade com pessoas trans, e se é pra ser honesto, eu já testei algumas pessoas dessa mesma forma). O que nos leva ao próximo ponto.

 3. Testosterona, parte II: eu não tenho 100% de certeza de que essa é a fala, porque tem muito barulho de fundo (e lábios no meio do caminho) quando o Felix diz isso, mas vou seguir com essa mesmo porque é o que eu escutei: "Sua testosterona também não me choca, Tony". Véi... Véééi. Felix, você é meu herói. Ele recusa morder a isca na cara dura, recusa ser provocado pra tratar o Tony como sendo qualquer outra coisa além do que ele é: só outro cara de quem ele precisa extrair informação. Pessoas cis tratando pessoas trans de acordo com o gênero delas sem questionar? Sim, por favor, me dá mais.




[Observação: uma fonte muito, muito confiável me confirmou que eu entendi a frase dita pelo Felix de forma errada. O Felix diz: "Fluidez também não me choca, Tony", o que cabe perfeitamente no que eu estou dizendo, então não vou mudar.]


"Só mais uma variação na pele da minha irmã"



As pessoas podem se sentir como for a respeito de uma pessoa cis interpretando uma pessoa trans, mas eu quero dizer sem a menor dúvida que eu estou muito, muito feliz por eles não terem ido atrás de outra pessoa que não a Tatiana pra fazer o Tony. Dá pra imaginar eles usando outra pessoa (mesmo uma pessoa trans que se parece com ela)? Isso acabaria comigo. Isso me deixaria à parte como uma aberração, como diferente de todo mundo, ainda que eles pudessem certamente encontrar alguém parecido com a Tatiana ao invés de fazê-la interpretar todo mundo. Mas eles não fizeram isso. E se eles tivessem feito uma exceção só pro Tony, ia ficar parecendo que pessoas trans simplesmente não fazem parte da humanidade coletiva que a série representa. O Tony é uma variação tão válida quanto, um resultado tão provável quanto qualquer outro entre os clones. Apenas mais uma variação, e uma parte tão válida e valorizada do Clone Club quanto qualquer um dos clones cis. Eu não tenho palavras pra dizer o quanto isso é importante pra mim.


Só mais um clone

 
Finalmente, o Tony tinha um papel. Ele tinha uma história pra contar e uma tarefa que poderia facilmente ter sido atribuída a um clone cis, mas não foi. Mesmo a conversa surpresa entre o Art e o Felix é incrivelmente curta e direta. Sim, ele é um clone trans. Ele é um clone como todos os outros. Vamos em frente, temos uma história pra contar. Ele levou a história do Felix imensamente adiante (deusa, eu quero tanto ver o desenrolar do Felix lidando com o interesse dele pelo Tony), ele trouxe informações importantes ao Clone Club, e foi guardado pra estar disponível no futuro caso seja necessário avançar nessa história. Ele foi necessário, e qualquer coisa relacionada à transexualidade dele era informação de segundo plano, um lindo vislumbre da vida de uma pessoa trans da vida real que pode ajudar a educar algumas pessoas, sem dar a impressão de que é só pra isso que servem pessoas trans. Em suma, ele é como qualquer outro personagem que você poderia ver na televisão com o intuito de contar uma história, que por acaso é trans. E isso, meus amigos, é lindo.


Vocalizando Minha Vida: Falas Importantes Ditas Por ou Sobre Tony Sawicki

Há algumas palavras realmente importantes e incríveis nesse episódio que eu gostaria de apontar e falar a respeito:

"Tony, o que você está fazendo aqui é muito mais complicado que sexo ou gênero" — Felix

Apenas... Obrigado, Orphan Black, por dizer isso. Sexo e gênero são complicados. Obrigado por reconhecer isso.

Que jeito de ampliar a qualidade da série de uma forma que provavelmente vai ressoar exclusivamente na população LGBT. Sério, pra pessoas trans (ou pelo menos pra mim), se entender e transicionar é uma das coisas mais difíceis e assustadoras que você pode fazer. Apresentar a complexidade do mundo dos clones em contraponto a com que o Tony teve que lidar em termos de gênero e sexualidade? Lindo. E mais pra frente fica mais, continue comigo.  

 "Meu amigo Sammy tava pouco se fodendo pro que tava acontecendo entre as minhas pernas, ele apenas em enxergava" — Tony
.

 Um salve pra todo amigo que simplesmente não se importava com minha transexualidade. Pra todo mundo que tava simplesmente tipo "Cara, você é foda. Por que eu me importaria com o que tá rolando lá embaixo?". Pro Sammy, que tá morto, e tava pouco se fodendo. Pra todo mundo que simplesmente me enxergou. Obrigado. Até que você experimente como é não ser visto como quem você é... Você nunca vai entender o que significa ter pessoas que apenas. enxergam. você.

"Não é a nossa crise de identidade usual" — Sarah

Esse faz referência ao primeiro quote... A complexidade da coisa com que eles estão lidando é mitigada pelo que o Tony passou no processo de encontrar a si mesmo. E isso é maravilhoso.


 "Eu trabalhei isso tudo há muito tempo" — Tony


Suas escritoras maravilhosas. Sua atriz maravilhosa. Sua série maravilhosa. Vocês pegaram a experiência mais difícil e complicada pela qual a maioria das pessoas trans passa e fizeram dela algo incrivelmente positivo. Por que quer saber? É mesmo. 10 anos depois, minha transição não é mais horror e medo e tristeza... É força, e aço, e a compreensão de quem eu sou. É o fogo no qual eu fui forjado e eu não me arrependo nem por um instante. Eu não lamento ou choro ou tenho dificuldade (eu tenho dificuldade, às vezes, com relação ao meu corpo... Mas não à minha transição). É quem eu sou, e um pedaço profundamente incorporado a mim mesmo e que me trouxe muitas coisas maravilhosas, não desimportante é a necessidade de descobrir quem eu sou, quem eu realmente sou. Eu não posso agradecer a essa série o suficiente por colocar isso lá fora, no mundo.


"Eu não sabia que Tony Sawicki era um personagem que eu precisava"

É engraçado ver quantas vezes ao longo da leitura eu vi essa frase se repetir na boca de tantas pessoas trans. Eu a disse pra mim mesmo, assim que o oitavo episódio da segunda temporada foi ao ar. E eu me lembro de sentir, vendo ao episódio, algo estranho ao, de repente, de alguma forma, perceber que um lugar que estava vazio em mim foi inesperadamente preenchido... Um lugar que eu nem sabia que existia. Eu fiquei pensando sobre isso, e o que é que tem o Tony que foi tão surpreendentemente comovente pra pessoas trans? Eu ainda não tenho certeza de que dei conta de tudo, mas tenho algumas ideias:

A Humanidade do Tony: uma das coisas mais importantes sobre o Tony pra mim, pessoalmente, é quão humanamente imperfeito ele é. O Tony é descarado, agressivo, e ocasionalmente frustrante. Ele pode ser bem exagerado, e meio que uma caricatura da masculinidade (não diferente do Felix, que pode ser percebido como uma caricatura de homens gays). Ele, ridiculamente gato com seus mullets e botas, gloriosamente e imperfeitamente humano. Pra uma comunidade que geralmente é reduzida a uma única faceta de sua humanidade (a transexualidade), esse foi um verdadeiro presente. Nós somos todos seres humanos multi-facetados com o que há de bom e ruim espreitando dentro de nós. Inclusive pessoas trans. E o Tony foi real assim.


A Autoconfiança do Tony: essa é uma das grandes pra mim. Eu estou nada menos que devastadoramente cansado do garoto trans lutando com sua identidade, tentando encontrar seu lugar no meio do mundo cisgênero que é geralmente representado na televisão (tipicamente se encontrando no meio da comunidade lésbica). Essas histórias são reais, e são importantes também, mas são apenas uma parte da vida de um homem trans. Há tanto mais. Há o auto-entendimento endurecido nas chamas de lutas e acusações. Há confiança do tipo que você adquire na ponta de chutes raivosos tanto de pessoas cis hétero quando de pessoas sexodiversas. Há dúvida e crescimento e eventualmente aceitação. Eu escrevi uma vez sobre quão raramente vemos como homens trans sobrevivem, que belos homens nos tornamos. E o Tony é uma representação disso.

A Complexidade do Tony:  o Tony não é "o clone trans" (uma expressão que me faz encolher quando a vejo na mídia), ele não é isso. Há tanta coisa nele. Ele é trans, sim, e ele também é gay ou bi ou pan (enfim, em termos de sexualidade, ele não é hétero), ele passou por tempos difíceis, ele tem uma relação bagunçada com os pais, ele não gosta que guardem informações dele, ele tem uma queda pelo Felix, o humor dele é afiado feito agulha, ele é charmoso e provocador. Ele é tantas coisas além de trans. Eu sei que tem gente que não achou muito incrível que ele teve um plot no episódio... Mas eu aprecio muito porque signfica que puderam fazer dele um personagem tridimensional.

O Conhecimento do Elenco/dos Escritores: tudo isso veio do trabalho feito por essas pessoas pra assegurar que elas estivessem não contando "a história trans", mas "a história do Tony". O respeito e cuidado com que lidaram com isso foi notável.


Nós somos uma comunidade grande que nunca foi tratada com cuidado e respeito, que nunca ouviu que nossas histórias são importantes (mesmo em espaços LGBT, há muita hesitação quanto a pessoas trans). É difícil perceber a ausência de algo, e eu sei que pessoalmente eu nunca imaginei que as coisas pudessem ser diferentes de nunca ser completamente eu mesmo, nunca estar completamente seguro em qualquer lugar. Eu não sabia que a vida podia ser de outra maneira.

Eu nunca soube que precisava de um espaço seguro pra ser eu todo, até que Orphan Black (a série e a base de fãs) me deu isso. Acredito que muitos outros homens trans se sentem da mesma maneira.

Não sabíamos que precisávamos de um lugar ao qual pertencer, onde nossas histórias importam, até que nos deram um. E por isso eu serei pra sempre grato e motivado.

Eu sou um cara trans velho (10 anos pós-transição) e frequentemente me sinto apagado no segundo plano da comunidade LGBT. Um pouco disso é meu, eu não falo muito sobre ser trans, não é o foco da minha vida (minha transexualidade não é a coisa mais interessante a meu respeito), então eu deixo escorregar pro pano de fundo. Eu também, ultimamente, tenho evitado certos espaços LGBT porque eu me canso de bater cartão de trans. O lado bom de andar pelo mundo cis hétero acessando privilégio de "passabilidade" é que eu consigo ser só eu.




Dito isto, eu não tinha ideia de quão faminto eu estava por alguém como eu na mídia. Por quão voraz eu estava pra que fosse tudo bem ser eu. Eu posso passar como qualquer outro cara, e na verdade eu sou qualquer outro cara. Mas eu também tomo testosterona, e usei binder por alguns anos (grato por conseguir a cirurgia e não precisar mais fazer isso), e preciso me preocupar, por exemplo, com o que dizer a garotas com quem eu saio quando chegamos ao ponto em que sexo é uma possibilidade. Nenhuma dessas coisas faz de mim menos homem, mas... Eu acho que as escondo porque estou cansado de isso significar que eu sou uma aberração. Eu não quero ser uma aberração. Eu só quero ser um cara que tem esses aspectos na vida dele. E isso é o que o Tony é e... eu adoro isso. Eu precisava disso. Eu sinto isso até os ossos.

Quando as pessoas falavam de representatividade, eu não realmente entendia. Quero dizer, abstratamente, claro, mas não desse jeito. Não esse sentimento profundo e supridor de ser de alguma forma mais humano, mais válido, mais real, mais ok, mais normal do que eu poderia jamais esperar. Então, obrigado, Orphan Black, por isso.

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