quarta-feira, 6 de novembro de 2013

sobre "igualdade"

Vejo muita gente usar por aí uma expressão que passou a me incomodar bastante: "somos todos iguais". Vi no meu feed de notícias um compartilhamento sobre uma nova sigla a ser adotada no lugar de "LGBT*" que incluiria, entre outras letras, A para assexual, I para intersexo e Q para queer (o que achei redundante) e a proposição de uma nova sigla: GSD, que significaria Gender and Sexual Diversities (Diversidades Sexuais e de Gênero), que aliás achei demasiadamente genérica.

A pessoa que compartilhou esse post questionou a utilidade dessas siglas e sugeriu que, ao invés de rotular as pessoas todas, apenas promovêssemos "igualdade". Uma "igualdade verdadeira", provendo às pessoas os direitos sobre seus corpos, seus relacionamentos, suas vidas, seus nomes, a se vestir como querem, ser tratadas como preferem, a ter seu próprio espaço, sem que isso seja apontado como errado ou inapropriado. Prover às pessoas o direito de não serem tratadas como mercadorias, como lixo, porque "somos seres humanos e isso é o suficiente". Eu comentei nesse post expondo a minha posição e a pessoa disse que gostaria de publicar meu comentário, então irei reproduzir aqui o que eu disse, com algumas modificações.

A sigla LGBT*, na verdade, já não significa muita coisa, não porque as definições nela não sirvam de nada, mas porque esse movimento especificamente encontra-se vazio no sentido de que só serve aos homens cis homossexuais brancos, pois eles foram assimilados, incluídos na lógica de ascensão ao status quo, rifando as pessoas LBT*. É por isso que a gente chama de GGGG, fazendo chacota dessa assimilação. Mas o fato de essa sigla em específico ter perdido seu significado (já que o Movimento LGBT* tornou-se o Movimento Gay) não significa que a gente deva ignorar que existe uma diferença entre mulheres cis e trans*, pessoas trans* binárias e não-binárias, entre pessoas monossexuais, polissexuais e assexuais, entre pessoas monogâmicas e não-monogâmicas, entre pessoas brancas e não-brancas, etc, etc, etc. Quando se passa a tratar todas as pessoas como "iguais", se ignora as especificidades de cada uma delas e, portanto, as especificidades da opressão que cada classe sofre. Se todas as pessoas são iguais, nenhuma oprime, nenhuma é oprimida.

A pessoa que compartilhou o post, sendo uma mulher lésbica, sofre um tipo específico de misoginia intersecionada com homofobia — ela sofre lesbofobia, o que não acontece com uma mulher hétero. Existe uma especificidade na opressão patriarcal que ela sofre, e eu não posso ignorar isso na hora de lutar pra anular os privilégios masculinos e heterossexuais que são exercidos sobre ela, tratando a opressão que ela sofre como se fosse exatamente a mesma que uma mulher hétero sofre. Uma mulher trans* sofre misoginia intersecionada com transfobia (transmisoginia). Eu não posso ignorar a diferença existente entre as opressões sofridas por uma mulher cis hétero, uma mulher cis lésbica e uma mulher trans* (hétero ou não), porque existe uma especificidade em cada opressão que varia de acordo com a pessoa oprimida (assim como existe na opressão sofrida por mulheres negras, que interseciona misoginia e racismo, por exemplo). Se eu fizer isso, se eu ignorar essas peculiaridades, a minha luta não será eficaz e não estará ajudando a liberar a todas as pessoas (neste caso, todas as mulheres).



Pra combater a todas as opressões, nós precisamos nomeá-las e nomear seus agentes (nomear pessoas brancas, pessoas cis, homens, pessoas hétero, pessoas sem deficiência, pessoas ricas, etc), e é necessário saber sobre quem essas opressões recaem, e só sabemos disso através da identificação das pessoas como negras, indígenas, lésbicas, bissexuais, trans binárias, trans não-binárias, assexuais, etc, entendendo como e porquê cada opressão recai sobre cada classe, quais delas se intersecionam e de que modo, reconhecendo a fonte dessa opressão. Simplesmente tratar as pessoas como "iguais" não resolve. Na verdade, tratá-las como iguais atrapalha a luta contra a opressão, constrói falsas simetrias. Essas siglas, definições, nomes, rótulos, eles existem por uma questão de visibilidade e direção, de nomeação, porque nós não somos iguais. Nós somos diferentes, e essa é a questão. E ignorar nossas diferenças só perpetua a opressão (através do ato de ignorá-la) e mantém tudo como está.

Sobre o que foi citado no post: a quem é negado direitos sobre os próprios corpos, relacionamentos e vidas? A quem é negado o direito de vestir o que se quer, ser chamade pelo nome que se prefere? Isso é negado a homens, pessoas hétero, pessoas cis? Ou isso é negado a mulheres, pessoas sexodiversas e/ou pessoas trans*?

De quem é o espaço sendo invadido? É o espaço das pessoas brancas, das pessoas ricas, os espaços masculinos? Ou são os espaços negros e indígenas, os das pessoas pobres, os das mulheres?

Quem é considerado lixo por conta de seus corpos ou das pessoas com quem se relacionam? São as pessoas cis e hétero? Ou são as pessoas sexodiversas?

Quem é considerado inapropriado, inferior? Pessoas sem deficiência, pessoas ricas? Ou são as pessoas com deficiência? As pessoas pobres?

Somos seres humanos que se enquadram em diferentes classes que nos protegem ou nos tornam alvos de violência, na maioria das vezes simultaneamente. Como saber pelo que ou contra que(m) lutar se não se nomeia oprimido e opressor? Esse "agente do INMETRO", nomeado no post como "a sociedade", que nos fiscaliza, nos policia, e reduz a lixo as pessoas desviantes das normas sociais, ele tem nome. E é preciso nomeá-lo pra saber qual é o nosso alvo. Somos seres humanos, mas saber apenas disto não é suficiente para pôr um fim à opressão.

É necessário reconhecer o inimigo e sua fonte de poder.