quinta-feira, 5 de setembro de 2013

sobre o verdadeiro problema

Escrevo este post por sugestão de Oz, que considerou o que eu disse em uma conversa um relato expressivo.

Oz, uma pessoa de quem gosto bastante, me disse que havia sonhado comigo, e a conversa sobre esse sonho e como ele é análogo a algumas situações por quais passamos ou sentimentos que temos levou a este relato. Vou direto ao ponto.

No momento em que eu comecei a deliberar sobre a possibilidade de não ser heterossexual (que pra ter sinceridade eu não me lembro quando começou, mas sei que começou quando eu ainda tinha pouca idade), a ideia de ficar com mulheres me pareceu perfeitamente natural. Eu não me lembro de ter achado que era uma pessoa errada, absurda, incoerente, suja ou qualquer coisa similar. Eu podia gostar de mulheres e querer estar com uma, e isso, pra mim, era normal. E eu gostava de mulheres, as achava atraentes, e queria ficar com elas. Isso me pareceu plausível e legítimo. O problema sempre esteve nas pessoas lesbofóbicas e/ou heterossexistas¹ e em como eu teria problemas pra me adequar a elas (o que eu não queria fazer de modo algum) e lidar com o que elas pensam sobre a lesbianidade, como eu teria problemas para me livrar dessas pessoas que supõem que caiba a elas aceitar ou não o tipo de relacionamento que eu tenho com quem eu quero, como elas me cobrariam explicações sobre eu ter nascido ou não homossexual, e se sentiriam no direito de opinar a respeito.

Quando eu já ficava com mulheres, eu percebi que o que eu sentia por elas não anulava a possibilidade de eu continuar sentindo atração por pessoas de outros sexos. Eu era então alguém que não dava a mínima pro gênero ou genital das pessoas que me pareciam atraentes e isso me pareceu possível e natural, e eu nunca tive problemas pra encarar a minha bissexualidade. O problema foram as lésbicas cisgêneras que, tendo sido normatizadas por uma sociedade de mentalidade monossexista², me cobravam lesbianidade, por considerar a lesbianidade mais legítima, ou achar que eu estivesse num momento confuso da minha vida, tentando decidir o que eu escolheria, como se a bissexualidade fosse algo inexistente, impraticável. O problema foram os homens cisgêneros heterossexuais que claramente demonstravam intenções de se aproveitar dessa bissexualidade. O problema foram as pessoas cis e heterossexuais que riram de mim, pensando até que eu fosse uma pessoa ingênua e também indecisa, que eu estivesse numa fase que logo passaria. O problema foram todas as pessoas que olharam pra mim como se eu estivesse me desviando de um padrão (o que eu estava) que deveria ser seguido à risca, querendo que eu escolhesse logo de uma vez um único gênero pelo qual me atrair, porque bissexualidade é algo que a gente supostamente usa pra esconder a homossexualidade ou pra matar a curiosidade do que é ser homossexual sem tornar-se um (seja lá o que isso significa). O problema foram todas as pessoas que me perguntavam se eu tinha voltado a ser hétero quando eu resolvia ficar com um cara, ou se eu tinha decidido ser lésbica mais uma vez quando ficava com uma garota outra vez, como se a bissexualidade fosse algo impossível, ou de forma depreciativa, insinuando que eu estivesse deliberadamente trocando de orientação sexual a todo instante. Que me pediam para explicar como eu podia ser bissexual, porque isso não fazia sentido pra elas, e insinuando que eu não fosse uma pessoa fiel e confiável por isso, que pessoas como eu são promíscuas e incapazes de se manter num relacionamento monogâmico. O meu problema foram as pessoas monossexistas² e como elas tomam como legítimas apenas orientações monossexuais, e nunca a minha sexualidade em si ou a forma como eu a enxergava.



Quando eu notei que não era uma pessoa monogâmica (e eu notei isso enquanto ainda estava num relacionamento monogâmico), eu achei que fez sentido. Fez sentido pra mim não achar que o envolvimento de alguém com quem tenho uma relação com outra pessoa não ameaçasse essa relação e que eu não precisava deixar de sentir algo por alguém para sentir algo por outra pessoa. Um clique aconteceu na minha mente e eu vi que eu não tenho propriedade sobre outras pessoas  — nem quero ter — e que elas não a têm sobre mim — e eu não quero que elas tenham. Não tive problemas para compreender isso, para reconhecer que eu estava entrando num processo de racionalização e abandono da monogamia e dos sentimentos de posse exercidos e incitados em relações monogâmicas. O problema se concentra nas pessoas que afirmam com uma suposta propriedade que só é amor se for monogâmico, que só se pode amar "de verdade" apenas uma pessoa, e que o afeto só será completo se compartilhado exclusivamente com uma pessoa, e que tudo o que não se enquadra nisso é ilegítimo, mesmo que a monogamia traga consigo uma relação muito forte com a misoginia e o capitalismo e outras formas de opressão. Que isso tudo é apenas "uma grande putaria", e que eu estava numa de querer pegar todo mundo, só por diversão, mas que quando eu encontrasse alguém especial, eu voltaria ao normal. Que a não-monogamia não pode ser séria, e que pessoas que não são monogâmicas não sabem o que é amor ou afeto, que amam errado.




Quando eu entrei em contato com questões trans*, em decorrência do meu contato com o feminismo, eu estava num momento em que, após compreender o que define uma pessoa cisgênero³, eu não conseguia me dizer uma pessoa cis, porque isso não me parecia coerente com meu próprio ser; eu percebi que não realmente me enxergava como uma mulher, nem me sentia confortável com essa designação. Porém, por também não me identificar com um gênero binário (homem ou mulher), por exemplo, eu não me sentia no direito de me dizer trans*, pensando que se o fizesse estaria usurpando uma narrativa que não era minha e negando privilégios. Então, quando me deparei com a não-binaridade, tudo fez sentido pra mim. Fez sentido que eu não tivesse mais que me dizer cis, porque eu não sou cis. Fez sentido que os meus sentimentos constantes de deslocamento em tempo, espaço e corpo não fossem à toa, e foi bom entender os motivos de eu ter dificuldades em me dizer mulher. Eu finalmente havia encontrado o meu lugar, um lugar onde as coisas faziam sentido, onde meu próprio ser era bem mais compreensível pra mim que em qualquer outro, e eu não tive nenhum problema em enxergar a mim. O problema foram as pessoas cissexistas que me disseram que eu nasci tendo gênero e isso jamais poderia ser mudado, se apropriando da minha identidade. As pessoas que tentaram a todo custo usar da biologia pra me colonizar, usar meu DNA e meu corpo como pretexto para me enquadrar em algo que fosse mais aceitável para as normas de gênero, ou que tentaram desenvolver narrativas trans* a serem seguidas, a se tornarem padrão. O meu problema foram as pessoas binaristas (cis e trans*) que me disseram que "mesmo que você não seja cis, não existe isso se não ser homem nem mulher, você tem que ser um dos dois", ou que disseram que eu estava numa subcategoria (só pra não perder o hábito, sub porra nenhuma), como se narrativas trans* binárias fossem mais legítimas ou mais importantes que narrativas similares à minha. O problema é como outras pessoas insistem em ler meu corpo, errando meu gênero insistentemente, inclusive de propósito. O problema não está em como eu me vejo ou o lugar onde eu estou, mas nas pessoas que, tendo sido criadas sob a regência de normas cissexistas e binaristas, querem que eu me veja de outra forma, como se pudessem controlar a imagem que tenho de mim, e me jogar de volta onde eu estava, num lugar onde meu corpo, minha mente, meu ser não faziam sentido.




Eu, na maioria das vezes, me senti confortável comigo até que outras pessoas, se encarregando de perpetuar o que foi imposto e ensinado a elas, viessem até a mim questionar o que eu sou, tentar me desmentir ou dizer que eu não podia ou não devia ser assim.

As pessoas em geral, tendo crescido sob a regência de todas essas regras e entendido que todas as pessoas devem segui-las, muito comumente insinuam ou realmente acreditam que nós temos problemas com quem somos (leia-se: que nossas identidades são um problema). Que precisamos nos explicar pra elas — e quando digo explicar, isso implica, principalmente, em alterar aspectos das nossas identidades, e não para que sejam mais compreensíveis ou inteligíveis (entendíveis, como diria Juno), mas pra que sejam mais aceitáveis, o que significa estar em maior concordância com as normas pré-estabelecidas de como supostamente deveríamos ser. E ao ressaltar que foram pré-estabelecidas, é pra explicitar que foram estabelecidas anteriores a nós: decidiram por nós como deveríamos ser mesmo antes que tivéssemos nascido, ou que tivéssemos entendimento suficiente para sequer compreender o que fazia parte dessas regras que serviriam para nos controlar. As pessoas, tentando seguir o fluxo, seguir a ordem que, segundo dito desde sempre a todas as pessoas, é a correta, querem nos fazer falar para elas o que somos, não porque se preocupem com o que temos a dizer ou com nos compreender e respeitar, mas de forma que elas possam argumentar contra isso. Contra o nosso próprio ser. Porque nossos seres quebram as regras que elas estabeleceram, ou que elas seguem e se sentem confortáveis seguindo.

Não temos obrigação de seguir regras que nos negam para deixar outras pessoas confortáveis (mesmo quando uma pessoa que é também ferida por essas regras se sente confortável com uma delas, pois isso não significa que essa pessoa se beneficie também dela). Não somos o problema. Não temos obrigação de explicar quem somos para quem tem apenas a intenção de atacar-nos, porque nós não somos o problema. E se estamos a infringir regras, é porque desejamos arduamente que não mais existam regras de como devemos ser. Regras que não nos contemplam, que nos oprimem, que nos negam e inclusive matam. Nossas identidades, nossos corpos, orientações, decisões, desejos, nossas autoimagens, nossos desvios — nós: nós não somos o problema.

Ps: O intuito é esse, Oz, que a gente se conheça e se defina por nossas próprias palavras, e não por palavras alheias. Esse texto não é sobre como eu sei perfeitamente quem sou, mas sobre como estou aprendendo a (e exigindo que eu possa) reconhecer minha própria narrativa e defini-la, reconhecer meu meio, reconhecer a mim, sem que me atropelem, sem que me interrompam, sem que me calem — mesmo que eu esteja me reconhecendo só em pensamento, em silêncio. Eu exijo "o meu direito vital a ser um monstro, e que outros sejam o normal", e que eu possa reconhecer isso por mim, sem interferência.

¹Ser heterossexista (seguindo a heteronorma) é priorizar a heterosexualidade, tomá-la como a única orientação legítima, ou mais legítima que outras orientações.
²Monossexismo é priorizar, tomar como unicamente legítimas ou mais legítimas orientações que consistem na atração por apenas um gênero (heterossexualidade ou homossexualidade), gerando o apagamento das orientações não monossexuais (bi e pansexualidade).
³Cisgênero é uma pessoa que não é trans*, que possui uma identidade de gênero que concorda com o gênero que foi designado a ela ao nascer. Por exemplo, uma mulher que foi designada mulher ao nascer e se identifica como mulher.
Ser cissexista (seguindo a cisnorma) é dizer, entre outras coisas, que quem tem vagina é necessariamente mulher e quem tem pênis é necessariamente homem.
O fluxo que mantém as pessoas certas no poder e perpetua o status quo.