segunda-feira, 19 de setembro de 2016

"sexo biológico"

Este texto é uma tradução desta resposta.

"sexo é biológico???????????????? vai abrir um livro de biologia??????????????? não é uma construção social você tá falando de gênero???????????????"

Espero que a superabundância de interrogações seja uma indicação de que em algum nível você sabe quão completamente errada sua afirmação está.

[Aviso de disparador: discussão sobre genitais e órgãos internos]

Em primeiro lugar, quando você diz "sexo", assumo que esteja falando do que é geralmente chamado de "sexo biológico", "dimorfismo sexual" ou "diferença sexual". Especificamente, o que você está tentando dizer ou insinuar é que há duas categorias de corpos: masculino e feminino/macho e fêmea. Vou supor que você começa pelos cromossomos, que isso tem sido considerado a base "mais fundamental" do sexo por transmisóginos desde pelo menos 1979.

Um cromossomo sexual é uma bolha com uma aparência particular que aparece num cariótipo, ou num teste envolvendo tingir e microscopicamente analisar cromossomos. Cromossomos são pequenas bolhas de gosma sobrepostas que, se você as isolar o suficiente, você descobrirá que são uma corrente de DNA — o que significa que são uma corrente de pares de base (guanina e citosina, adenina e timina). O que você também vai encontrar são histonas envolvidas em cromatina. Além disso, você vai achar metilação, e todo tipo de partículas e compostos químicos porque, adivinha? DNA não é um sistema de código linear. DNA é codificado em pedaços — geralmente em triplos que costumam ser lidos como certos aminoácidos, que então se juntam pra formar blocos de proteínas. Mas a questão sobre código em triplos é que a coisa pode ficar bem complexa. Então

AGGCTTATTAGGCTCTA

pode, por exemplo, simultaneamente codificar como

AGG CTT ATT AGG CTC ta

e

a GGC TTA TTA GGC TCT a

e

ag GCT TAT TAG GCT CTA

Só pra te dar um exemplo. Agora, há sinais indicando como o código deve começar, mas esses sinais podem mudar de lugar, ou ser desativados. É também pra isso que serve metilação — ela pode ativar ou desativar os sinais de onde o código começa na corrente. Metilação em qualquer parte de um DNA pode ser ativada por todo tipo de coisa. Um estudo encontrou uma ligação entre níveis de diabetes e níveis de estresse nas avós de quem tinha diabetes — ou seja, estresse foi ligado a diabetes em netos. Só pra você ter uma pequena ideia do nível da complexidade desse código.

E essas complexidades continuam em todos os níveis. As proteínas que são formadas por aquelas sequências de DNA podem se juntar de formas diferentes dependendo da composição química do ambiente. O DNA em si — um objeto tridimensional no mesmo ambiente — pode interagir fisicamente com as proteínas ou consigo mesmo. Mas também se lembre de que estamos falando de gosma química sujeita a condições ambientais, o que inclui todo tipo de mutação. Às vezes a porra toda fica esquisita (não vou dizer que dá "errado", porque isso implica em dizer que mutações são "ruins", o que é uma besteira completa dada a necessidade de mutações pra adaptabilidade genética — e também atribui noções antropocêntricas de funcionalidade e comportamento "bom" e "ruim" pra gosma) e AGG CTT ATT perde uma letra e se torna AGC TTA tt (um frameshift — você também pode observar outras coisas, tipo mutações pontuais).  Além disso, a coisa pode ficar esquisita só quando o DNA tá sendo replicado — não é um processo de leitura perfeito, é um monte de reações químicas flutuando em gosma, e está acontecendo milhões de vezes, então a probabilidade de as coisas ficarem estranhas em vários aspectos é grande.

Mas mesmo além da codificação de DNA, no nível dos cromossomos, as coisas são meio confusas. Porque os cromossomos se unem através de gosma distribuída mais imprecisamente quando a célula está se dividindo, e as coisas podem dar errado nesse processo — podem ser perdidas, ou ir parar do outro lado, etc. Da mesma forma, há um processo chamado de crossover ou recombinação que acontece na replicação de células durante a metáfase (quando cromossomos são pareados no centro da célula antes de o núcleo se dividir) onde cromossomos apenas trocam os bagulho de lugar porque sim. E é bem aleatório onde isso acontece também, o que pode significar que códigos foram divididos ao meio ou que novos códigos foram criados.

Tudo isso nos leva ao fato de que é incrivelmente improvável esperar qualquer divisão 50/50 significativa entre cromossomos "XX" e "XY". O que funciona bem com a realidade, porque na realidade nós observamos todo tipo de variações, exatamente como esperaríamos. Agora, o que acontece quando há variação? Na maior parte do tempo, as coisas simplesmente acontecem. É tudo um monte de células. Elas fazem o negócio delas, criam pequenos órgãos, e aí se replicam pra que os órgãos cresçam e sejam mais específicos, etc. Então agora talvez você comece a ver por que esperar que elas se comportem em dois tipos perfeitinhos de padrão é completamente impreciso? Ou porque no mundo real nós observamos uma gama vasta de corpos em vez de Barbies XX e Kens XY? Mas mesmo olhando além disso, o que é que rola com o chamado "sistema reprodutor"? Bem, algumas dessas células têm a capacidade de gerar gametas — tipo "meias células" — que podem se juntar com outros gametas pra se transformar em outra bolha de órgãos. É isso que é fertilização e gravidez. É só isso que tá envolvido. Falando num geral, um tipo de gameta vai aparecer em corpos que tendem a ter uma gosma que aparece de tal jeito num cariótipo, enquanto outro gameta vai aparecer em corpos cujas células têm gosma que aparece de outro jeito no cariótipo, com toda uma variação e possibilidades. Então por que isso importa pra nós? Por que eu tô aqui sentada às 4h da manhã de natal com um pacote de salgadinho e uma taça de vinho respondendo perguntinha anônima de bosta sobre isso? Porque foi com base nessas tendências dos corpos que as pessoas construíram a noção de sexo.

O patriarcado é, basicamente, um sistema de exploração econômica que consiste em um grupo ter a si atribuído um tipo de trabalho que é valorizado, e outro grupo ter atribuído a si um tipo de trabalho que não é valorizado. Isso foi distribuído entre dois grupos generalizados de pessoas. Aquelas que tendem a ter um tipo de gameta e as que tendem a ter o outro tipo, e as que insistiram na ideia de que o trabalho delas era valioso eram os "machos", "homens", etc, enquanto aquelas que eram forçadas a ser objeto de exploração e violência eram as "fêmeas", "mulheres", etc. Como parte do processo de valorizar o trabalho masculino, homens construíram uma explicação pra desigualdade que eles afirmaram vir da natureza da realidade física. Especificamente, a noção de "diferença sexual" ou "dimorfismo sexual", ou as tendências das pessoas de produzir tipos de gametas diferentes. Pra poder justificar melhor e valorizar sua própria exploração sobre mulheres, homens construíram toda uma noção de identidade em torno disso, um ideal que pra eles calhava de estar contido no órgão que a maioria deles usava pra distribuir gametas (no caso, o pênis, que distribui espermatozoides). E pra justificar a violência que cometiam, eles argumentaram que naturalmente só havia dois tipos de pessoas, agrupadas com base no trabalho que faziam, nas posições durante o sexo, produção de gametas, etc (todas essas coisas foram fundidas e diferentemente enfatizadas ao longo do tempo, ajudando a mistificar a falsidade dessa distinção).

A noção de que certos tipos de órgãos são caminho pra certos tipos de comportamento, certos padrões econômicos, etc, é produto de um sistema social de opressão. Ela não é fundada em qualquer tipo de "fato biológico" porque antes de qualquer coisa esse "fato biológico" não existe. Um órgão não significa nada a não ser no contexto de uma "biologia" socialmente construída pra justificar o patriarcado. Literalmente. Eu trabalhei com biólogos (é, anon, se pá eu realmente já abri um livro de biologia algumas vezes na vida) e uma coisa que eu posso dizer definitivamente é que, como a maioria dos cientistas, eles não costumam pensar profundamente sobre como os tipos de perguntas que fazem e como a interpretação de dados que fazem estão estruturados no mundo. Na melhor da hipóteses, eles assistiram uma ou duas aulas mandatórias sobre bioética antes de se formar. Então quando eles vão interpretar dados matemáticos, eles fazem isso de uma forma que supõe que a verdadeira pergunta já foi respondida. Eles encontram dimorfismo não porque isso está nos dados que eles encontraram, mas porque isso foi presumido por conta de como eles fizeram a pergunta — se você perguntar "qual sexo é melhor em matemática?" você nunca vai achar evidência de que "sexo" é uma construção. É isso que muitas "verdades científicas" são, aliás — coisas que já haviam sido aceitas quando outras pessoas foram perguntar coisas mais complicadas, e que somente foram derrubadas, se é que foram, quando todas as respostas pra todas as perguntas complicadas revelaram algo que refutava o modelo anterior (o que inclusive está acontecendo agora com a noção de sexo — isso mesmo, até cientistas patriarcais estão se dando conta de como isso é a maior besteira, mesmo que tentando enrolar ao máximo e fazendo o maior estrago possível no caminho).

Mas o que podemos ver através de tudo isso é que o gênero precede o sexo. Gênero é uma forma de se organizar na esfera social, e dados biológicos são organizados em cima disso. Gênero, em outras palavras, é a categoria fundamental do sexo sob o patriarcado. Agora, alguém pode dizer que nós vivemos num mundo social, que nossas subjetividades são construídas socialmente, e portanto um órgão têm significado. Isso, claro, é verdade, mas é preciso reconhecer a natureza socialmente construída disso pra entender antes de tudo que não estamos lidando com um sistema rígido aqui. Não é simplesmente questão de dizer que, sob a realidade biológica, um certo cromossomo ou um certo órgão nos coloca em um certo local no patriarcado, e da mesma forma também não é simplesmente questão de dizer que, sob uma construção social, um certo cromossomo ou órgão nos coloca num certo local no patriarcado. Se esse alguém está ciente da complexidade envolvida em constituir socialmente o que é basicamente uma bolha de gosma (células) que produz ou não mais gosma (bebês, pessoas, etc) como pertencente a uma categoria binária e rígida, ele pode facilmente ver como essa construção social pode muitas vezes falhar e resultar numa pessoa que, por exemplo, tem um tipo de órgão, e no entanto tem sua identidade socialmente construída na categoria pra quem tem um tipo "diferente" (dentro das noções patriarcais de "diferença sexual") de órgão. De fato, só é possível falhar em reconhecer isso partindo do princípio desconfiado de assumir a priori que a pessoa em questão está enganando alguém ou sendo enganada, em vez de relatando a realidade tão bem quanto se pode relatá-la em linguagem. E o uso de inversões dessa linguagem pra relatar realidades mais próximas é um esforço pra redirecionar e ganhar controle sobre o biopoder e como ele foi decretado sobre nós. Isso não é mais ou menos legítimo do que a linguagem do patriarcado, exceto quando se encontra legitimidade em apoiar o patriarcado (argumentando que sexo é "real") ou em perturbar o patriarcado. 

Então o que é "sexo"? É a forma como pessoas falam de bolhas de gosma, e especificamente a forma como bolhas de gosma foram categorizadas em dois tipos, em pleno desafio à realidade, com o objetivo expresso de perpetuar o patriarcado.

Então, sim, sexo é biológico, no sentido de que os termos do sexo são codificados dentro do discurso da "biologia", que é em si uma construção no patriarcado.

Sexo é uma construção social. Essa é porra da minha palavra final sobre essa merda.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

sobre ciswashing

Ontem eu dei de cara com um tweet do Mark Ruffalo que dizia: "À comunidade trans. Eu ouço vocês. Eu me contorço ao ver sua dor. Estou feliz portermos essa conversa. Está na hora".

Pensei "Mas que porra...? Qual foi a merda da vez?" Aí entendi que "a conversa" era sobre um filme que ele produziu e que está sendo lançado ter um homem cis interpretando uma mulher trans no papel principal.

Respondi o tweet, sabendo que ele não ia ler, porque não consegui segurar. Respondi que essa conversa já aconteceu pelo menos dezenas de vezes. Eddie Redmayne. Felicity Huffman. Hillary Swank. Jared Fucking Leto. John Cameron. Melvil Poupaud. Lee Pace. Gael Garcia. Chloe Sevigny. Elle Fanning. Karla Mosley. Daniela Sea. Jeffrey Tambor. David Duchovny. Glenn Close. Andrew Garfield. Todo o elenco de um filme que se pretendia "Stonewall". Michelle Rodriguez. Cauã Reymond. Luís Salém. Matheus Nachtergaele. Cláudia Raia. Fábio Lago. E por aí vai. E dessa vez, Matt Bomer.

Jen Richards, uma mulher trans atriz e criadora da única série independente a receber uma indicação ao Emmy, foi chamada pra um papel secundário no mesmo filme. Uma garçonete com duas cenas. Ela desconfia de que não conseguiu o papel por não parecer "trans o sucifiente", como acontece com várias outras pessoas trans. Matt Bomer foi pré-requisitado pro papel principal, uma mulher trans e trabalhadora sexual. Se for também dependente química e soropositivo é BINGO. O papel foi escrito pra ele. Nenhuma mulher trans seria chamada pra esse papel.

Aí você se pergunta: se já deu tanta "polêmica" com isso, por que insistem em botar gente cis pra fazer gente trans?

Por uma série de motivos que nada têm a ver com o talento das pessoas cis em questão. Um dos principais motivos é que gente cis fazendo gente trans sempre dá dinheiros, não interessa quão "polêmico" seja. Dá dinheiros, dá aplauso, dá oscar. Pra citar a própria Michelle Rodriguez — que interpretou um homem cis matador de aluguel "transformado em mulher por um cirurgião 'louco'" num filme chamado nada menos que (re)assignment (isso mesmo, como em "gender reassignment surgery" num trocadilho com "assignment", de missão) e chamou esse personagem de mulher trans — "se a polêmica tá fazendo alguma coisa, essa coisa é promover meu filme, no press is bad press, baby", pra depois confundir Caitlyn Jenner com Kris Jenner, chamando-a no masculino.


Imagem do filme "Happy Birthday, Marsha!" sobre Marsha P. Johnson,
uma das mulheres trans responsáveis pela revolta de Stonewall.


Contar "histórias trans" é uma maneira de capitalizar em cima da violência perpetrada contra pessoas trans. O sofrimento de pessoas trans é muito rentável. Gente cis faz fila pra ver mulher trans se odiando e sendo espancada em tela de cinema. É bom pra elas. Em primeiro lugar, porque raramente o que elas veem na tela é uma pessoa trans, em segundo lugar porque, como em qualquer filme sobre pessoas de um grupo marginalizado, elas podem voltar pra casa e pensando sobre como são boas pessoas por não se sentirem indiferentes ao sofrimento daquela personagem. E depois, vida que segue.

Vida que segue porque depois disso elas não dão uma foda.

E claro que eu poderia estar aqui falando sobre milhares de outras coisas pelas quais pessoas trans passam ou que reivindicam, acontece que sinto nervoso, e é por causa disso. Porque é só uma das coisas que geram violência pra pessoas trans que diz muito sobre a transfobia em geral.

A começar pelo óbvio: gente cis não quer chegar em casa e ligar a tv ou logar na Netflix pra ver a cara duma pessoa trans, muito menos uma pessoa trans que "parece trans", a menos que isso traga pra ela algum conforto. Deus a livre de lidar com uma história fictícia que a acuse de ser a causa da violência contra um grupo no mundo real.

Esse negócio de parecer trans o suficiente é código pra "não parece mulher/homem o suficiente". Quando recusam uma mulher trans pra um papel em que a personagem é mulher trans por ela não parecer trans o suficiente, é porque gente cis não vai ver de cara que supostamente tem um homem ali, por baixo do que essa pessoa ingênua acha que a torna mulher. E de que serve isso, né? De que serve uma pessoa trans real que não vai ser pega no pente fino do olhar cis? Colocar uma pessoa trans real e comum pra interpretar um papel de uma pessoa trans humanizaria demais pessoas transsexuais e travestis. Se uma pessoa trans não vai ser caricata ou notavelmente um ator homem cis maquiado ou uma atriz cis de binder, que serventia isso tem pra pessoas cis?

E eu acho que isso tem muito a ver com o controle que pessoas cis tentam exercer diariamente sobre nós. Gente cis precisa dessa ilusão de que não somente somos um bando de otários tendo alucinações sobre quem somos, como também de que elas sempre teriam o poder de saber que uma pessoa é trans, e assim desmascará-la, mostrar ao mundo quem ela "realmente é". Não importa que o mundo não seja dividido entre dois grupos distintos de pessoas com tipo físico idêntico conforme a genitais, que por sinal também só aparecem de duas formas distintas.

No fim, o gatekeeping (explicação do termo no final do texto) não se trata somente de poder declarar-se trans e ter acesso a determinados procedimentos médicos e legais. Também é sobre quem tem permissão pra se dizer mulher, homem, ou não binário. É sobre controlar seu direito de se dizer quem é porque, aparentemente, a verdade sobre o que é ser homem e ser mulher está bem guardado nas mãos delas. Gente cis é entittled a essas identidades. Possuem mais direito a elas, não interessa que "um órgão genital não signifique nada a não ser dentro de uma biologia socialmente construída com o propósito de justificar o patriarcado". Elas não querem saber do propósito da biologia enquanto determinante absoluta dos sexos, ou do nosso papel determinante e coletivo como sociedade sobre a biologia. Elas querem saber do que essa biologia, que aparentemente caiu do céu, lhes disse, sem questioná-la. "Nós somos os homens e as mulheres de verdade". E fim.


Cartaz do filme "Tangerine"
 
Cheguei a comentar sobre isso no post de uma moça trans que apareceu na minha linha do tempo no facebook. Quando gente cis descobre que uma pessoa é trans sem que elas tivessem previsto isso, ou nos ouve dizer que não nascemos homens ou mulheres, porque órgãos, hormônios e cromossomos não bastam pra que isso se traduza em um comportamento específico, pra que isso se traduza em ser mulher ou ser homem, o que elas ouvem é a existência delas sendo posta em dúvida.

Enquanto uma cisativista da vida entende que a própria existência da transexualidade é uma afirmação de que ser mulher é "natural" e "inerente" a ela, o resto das pessoas cis ouvem uma bela merda contrária.

"Se eu ter nascido com esse corpo não significa que eu sou homem, o que explica o fato de eu ser homem? E se o que explica é que eu fui criado pra ser um, conforme estabelecido que deveria ser, isso significa que, afinal, eu não sou homem de verdade?"

Não, não significa. É uma coisa que toda pessoa cis que eu já encontrei teve dificuldade de entender. O fato de que algo foi criado, formado, estabelecido, concretizado socialmente, e só existe enquanto norma social, não significa que esse algo não seja real. Mas é como eu disse, deve bater um pânico, né? Se for verdade que ser homem ou mulher não é mera questão genética, então por que raios elas são homens e mulheres? É uma pergunta que faz uma galera tremer na base, principalmente porque torna confusas coisas que, quando absolutas, são justificativas perfeitas pra violências como, por exemplo, a misoginia. "Homens e mulheres nascem assim, e são reservados a ambos trabalhos que eles nasceram pra fazer, porque nasceram assim". Mas se não é assim que nascemos... como é que fica?

Aí que tá. Pessoas trans são uma ameaça a essa verdade absoluta da ciência. O direito à identidade, à autodeterminação, deve ser retirado delas permanentemente. Isso porque o processo de negar e deslegitimar identidades de pessoas trans é o processo de reiterar e relegitimar identidades cis. Elas precisam disso. Elas precisam saber que serem homens e mulheres é um fato imutável da natureza e que ninguém pode tirar isso delas, mesmo que por "tirar isso delas" elas queiram dizer "que ninguém inapropriado compartilhe dessa identidade com elas". Atacar pessoas trans é uma forma de reassegurar pessoas cis de quem elas são.

E por incrível que pareça, olhar pra uma tela e ver uma pessoa cis interpretado uma pessoa trans é uma das situações em que todas as coisas que acabei de citar ressoam na minha cabeça.

"No fundo, você é só mais um homem/mais uma mulher". "Você merece a discriminação que recebe". "Você não tem direito a existência".


Cartaz da série "Her Story"


E além de todas essas coisas, não citei a falta de emprego e moradia da população trans, ou as 50 travestis que morreram só em janeiro desse ano no Brasil, ou como, através do conteúdo artístico que consumimos, internalizar novamente que afinal somos homens ou mulheres quando não somos sempre resulta em violência direta e indireta pra pessoas trans, principalmente quando pessoas trans o suficiente disponíveis pra interpretar esses papéis, já que nem todas as pessoas trans possuem a mesma vivência ou realizam os mesmos procedimentos em seus corpos ao mesmo tempo. E novamente, vida que segue. Segue pra pessoas cis, especialmente as que podem deixar as consequências de espancamento, falta de moradia, do trabalho sexual, medo de andar na rua de dia ou de noite e centenas de outras belas merdas pra trás na sala de cinema. Vida que segue pras pessoas cis que vão ganhar dinheiro catalisando essas violências e não vão estar presentes quando elas acontecerem.

Eu não tenho uma linda mensagem de luta pra deixar no final deste texto. Ultimamente só o que eu consigo fazer é sobreviver de forma um pouco silenciosa. Sinto cansaço. Mas quem sabe sirva pra uma reflexão ou sei lá.

Ps: cis, suas interpretações de gente trans geralmente são uma bela bosta. Isso é porque, como colocaria a própria Jen, vocês esquecem de interpretar um personagem na força que fazem pra interpretar um gênero. Mais um motivo pra vocês tomarem vergonha na cara.

Ps 2: se é pra capitalizar em cima da realidade de gente trans, ao menos escolham histórias novas e interessantes. Pra citar a Jen novamente, imagina se todos os filmes sobre pessoas cis fossem sobre puberdade.

Gatekeeping:  é um termo em inglês que significa "guardar o portão". Se tratando de questões trans, se refere a barreiras frequentemente impostas na hora de determinar quem tem "permissão" pra se dizer trans, e consequentemente se dizer homem, mulher ou não-binário, e que são colocadas através de uma narrativa legítima única, uma maneira de ser trans específica e considerada a única correta. Esses obstáculos podem incluir diversos aspectos da vida de uma pessoa trans, como quando ela se descobriu e assumiu trans, a vontade de passar por cirurgias ou não, a presença ou ausência de disforia, o comportamento e orientação sexual dela, quão de acordo ela está com papéis de gênero designados ao gênero dela, etc. Gatekeeping é barrar pessoas trans de se dizerem trans por elas não serem trans de uma maneira específica imposta pela medicina e por pessoas cis em geral; gatekeeping é toda desculpa que se usa pra dizer que uma pessoa trans não é "trans de verdade" e portanto não pode ser mulher/homem/não-binário "de verdade".

domingo, 3 de julho de 2016

Toni Mac: As Leis Que Trabalhadoras Sexuais Realmente Querem

 Esta é uma tradução da transcrição de um vídeo da TED Talks

Aviso de disparador: este texto fala de misoginia, abuso sexual, tráfico de pessoas, abuso de poder, entre outras coisas que podem te causar desconforto.

Eu quero falar de sexo por dinheiro. Eu não sou como a maioria das pessoas que você já ouviu falar de prostituição. Eu não sou policial, nem assistente social. Não estou na academia, no jornalismo ou na política. E como você já deve ter notado, também não sou freira.

A maioria dessas pessoas vão te dizer que vender sexo é degradante, que ninguém jamais escolheria fazê-lo, que é perigoso; mulheres são abusadas e mortas. De fato, a maioria dessas pessoas diriam "Devia haver uma lei contra isso!" Talvez isso soe razoável pra você. Parecia razoável pra mim até o fim de 2009, quando eu estava trabalhando em dois empregos sem futuro de salário mínimo. Todo mês, meus salários serviam só pra cobrir meu cheque especial. Eu estava exausta e minha vida estava indo pra lugar nenhum. Como muitas antes de mim, eu decidi que sexo por dinheiro era uma melhor opção. Não me entenda mal — eu adoraria ter ganhado na loteria em vez disso. Mas não ia acontecer tão cedo, e eu precisava pagar meu aluguel. Então comecei meu primeiro turno num bordel.

Nos anos seguintes, eu tive muito tempo pra pensar. Eu reconsiderei as ideias que eu antes tinha sobre prostituição. Pensei muito sobre consentimento e a natureza do trabalho sob o capitalismo. Pensei sobre a desigualdade de gênero e o trabalho sexual e reprodutivo das mulheres. Passei por exploração e violência no trabalho. Pensei sobre o que é necessário pra proteger trabalhadoras sexuais dessas coisas. Talvez você tenha pensado sobre isso também. Nesta palestra, vou falar das quatro principais abordagens legais aplicadas ao trabalho sexual pelo mundo, e explicar por que elas não funcionam; por que proibir a indústria sexual na verdade intensifica todos os problemas aos quais trabalhadoras sexuais estão vulneráveis. E depois vou te dizer o que nós, trabalhadoras sexuais, queremos de verdade.




A primeira abordagem é criminalização total. Metade do mundo, incluindo a Rússia, a África do Sul  e a maior parte dos Estados Unidos, regula o trabalho sexual criminalizando todos os envolvidos. Quem vende, quem compra, e terceiros. Legisladores nesse países aparentemente esperam que o medo de uma prisão impeça as pessoas de vender sexo. Mas se você é forçado a escolher entre obedecer a lei e alimentar a si mesma ou sua família, você vai fazer o serviço de qualquer maneira, e correr o risco.

Criminalização é uma armadilha. É difícil conseguir um emprego convencional se você tem ficha criminal. Possíveis empregadores não vão te contratar. Supondo que você ainda precise de dinheiro, você vai permanecer na economia mais informal e flexível. A lei força você a continuar a vender sexo, o que é o exato oposto do efeito pretendido. Ser criminalizado deixa você exposto a maus tratos vindos do próprio estado. Em muitos lugares, você pode ser coagido a subornar ou mesmo fazer sexo com um policial pra evitar uma prisão. Foi documentado que policiais e guardas penitenciários no Camboja, por exemplo, submeteram trabalhadoras sexuais ao que só pode ser descrito como tortura: ameaças à mão armada, espancamentos, choques, estupros e negação de alimento.

Outra coisa preocupante: se você estiver vendendo sexo em lugares como o Quênia, África do Sul ou Nova York, um policial pode te prender se você for pega carregando camisinhas, porque legalmente camisinhas podem ser usadas como evidência de que você está vendendo sexo. Obviamente, isso aumenta o risco de HIV. Imagine saber que se você for pega carregando camisinhas, isso pode ser usado contra você. É um incentivo bem grande pra deixá-las em casa, certo? Trabalhadoras sexuais trabalhando nesses lugares são forçadas a fazer uma escolha difícil entre o risco de prisão ou fazer sexo de risco. O que você escolheria? Você levaria um pacote de camisinhas pro trabalho? E se você estivesse preocupada com a possibilidade de o policial te estuprar na viatura?






A segunda abordagem ao trabalho sexual, é criminalização parcial, onde comprar e vender sexo é permitido por lei, mas atividades relacionadas, como ter uma casa de prostituição ou procurar por clientes na rua, são proibidas. Leis como essas — as temos no Reino Unido e na França — essencialmente dizem a nós trabalhadoras sexuais que "Ei, não ligamos se você vender sexo, só tenha certeza de que você faça isso atrás de portas fechadas e sozinha". E uma casa de prostituição, aliás, é definida como duas ou mais prostitutas trabalhando juntas. Tornar isso ilegal significa que temos de trabalhar sozinhas, o que obviamente nos torna vulneráveis a homens violentos. Mas também estaremos vulneráveis se decidirmos desobedecer a lei e trabalharmos juntas. Alguns anos atrás, uma amiga estava apreensiva depois de ter sido atacada no trabalho, então eu disse que ela poderia receber clientes na minha casa por um tempo. Durante aquele período, um dos caras foi agressivo com ela. Eu disse pra ele ir embora, ou eu chamaria a polícia. Ele olhou pra nós duas e disse, "Vocês não podem chamar a polícia. Vocês estão trabalhando juntas, esse lugar é ilegal". Ele estava certo. Ele eventualmente foi embora sem se tornar fisicamente agressivo, mas o conhecimento de que nós estávamos infringindo a lei dava a ele poder pra nos ameaçar. Ele estava confiante de que sairia impune.

A proibição da prostituição de rua também causa mais danos do que os previne. Primeiro, pra evitar uma prisão, trabalhadoras de rua correm riscos pra evitar serem notadas, e isso significa trabalhar sozinha em locais isolados como florestas escuras onde estão mais vulneráveis a ataques. Se você for pega vendendo sexo na rua, você paga uma multa. Como você paga uma multa sem voltar pra rua? Foi a necessidade financeira que te colocou na rua em primeiro lugar. Então as multas se acumulam, e você se encontra presa num ciclo vicioso de vender sexo pra pagar as multas que você recebeu por vender sexo.

Deixe-me contar a vocês sobre Mariana Popa, que trabalhava em Redbridge, na zona leste de Londres. As trabalhadoras de rua da região dela geralmente esperavam por clientes em grupo, por segurança e pra avisar umas às outras sobre homens violentos. Mas durante uma repressão policial contra trabalhadoras sexuais e seus clientes, ela foi forçada a trabalhar sozinha pra evitar uma prisão. Ela foi morta por esfaqueamento na madrugada do dia 29 de outubro de 2013. Ela estava trabalhando até mais tarde que de costume pra pagar uma multa que recebeu por fazer ponto na rua.



Então, se criminalizar trabalhadoras sexuais as prejudica, por que não só criminalizar quem compra sexo? Esse é o objetivo da terceira abordagem da qual quero falar — o modelo Sueco ou Nórdico das leis de prostituição. A ideia por trás dessa lei é que vender sexo é intrinsecamente prejudicial, então você está na verdade ajudando trabalhadoras sexuais através da remoção dessa opção. Apesar do crescente apoio ao que é frequentemente descrito como a abordagem do "fim da demanda", não há qualquer evidência de que isso funcione. Há tantas prostitutas hoje na Suécia quanto havia antes dessa lei. Por que será? É porque pessoas vendendo sexo geralmente não possuem outras fontes de renda. Se você precisa de dinheiro, o único efeito que uma queda nos negócios vai produzir é forçar você a diminuir os preços ou oferecer serviços mais arriscados. Se você precisa encontrar mais clientes, você pode acabar procurando a ajuda de um gerente. Então você vê, em vez de colocar um fim ao que é comumente descrito como cafetinagem, uma lei como essa na verdade fomenta a presença de terceiros abusivos.

Pra me manter segura no meu trabalho, eu tento não aceitar trabalhar pra alguém que me liga de um numero restrito. Se é um serviço numa casa ou num hotel, eu tento obter nome completo e detalhes. Se eu trabalhasse sob o modelo Sueco, um cliente teria muito medo de me dar essa informação. Eu provavelmente não teria outra escolha a não ser aceitar sair com um cliente que não se pode rastrear caso ele se torne violento depois. Se você precisa do dinheiro deles, você precisa proteger seus clientes da polícia. Se você trabalha na rua, significa que você vai trabalhar sozinha ou num local isolado, como se você mesma fosse a criminalizada. Pode significar entrar em carros com pressa, e menos tempo de negociação significa decisões precipitadas. Esse cara é perigoso ou só está tenso? Posso correr esse risco? Posso me dar o luxo de não correr?



Algo sempre ouço é "prostituição seria ok se legalizássemos e regulamentássemos". Chamamos essa abordagem de legalização, e é usada por países como os Países Baixos, Alemanha, e no estado de Nevada nos Estados Unidos. Mas não é um modelo muito bom quando se trata de direitos humanos. Numa prostituição controlada pelo estado, a venda de sexo só pode ocorrer em áreas e locais determinados por lei, e trabalhadoras sexuais são obrigadas a obedecer restrições específicas, como registro e consultas médicas obrigatórias. Regulamentação parece ótimo em teoria, mas políticos fazem essa regulamentação da indústria sexual pra que ela seja cara e difícil de cumprir. Se cria um sistema de duas fileiras: trabalho legal e ilegal. Às vezes chamamos isso de "criminalização da porta dos fundos". Donos de bordéis ricos e com bons contatos podem cumprir essas regulamentações, mas pessoas marginalizadas acabam achando esses obstáculos impossíveis de atravessar. E mesmo que em princípio isso seja possível, conseguir uma licença ou um local apropriado aos olhos do governo toma tempo e dinheiro. Não será uma opção pra alguém que está desesperado e precisa de dinheiro hoje. Essa pessoa pode ser uma refugiada ou uma mulher fugindo de abuso doméstico. Nesse sistema de legal vs. ilegal, as pessoas mais vulneráveis são forçadas a trabalhar ilegalmente, então ainda estão expostas a todos os perigos da criminalização que mencionei anteriormente.

Então parece que todas as tentativas de controlar ou impedir trabalho sexual de acontecer torna as coisas mais perigosas pras pessoas que vendem sexo. Medo da lei faz com que elas trabalhem sozinhas ou em locais isolados, e permite que clientes e mesmo policiais abusem dessas pessoas sabendo que sairão impunes. Multas e fichas criminais forçam as pessoas a continuar vendendo sexo, em vez de ajudá-las a sair da prostituição. Repressão à clientela faz com que quem vende corra grandes riscos, inclusive sob gerentes potencialmente abusivos.

Essas leis também reforçam o estigma e o ódio contra trabalhadoras sexuais. Quando a França temporariamente implementou o modelo Sueco dois anos atrás, cidadãos acharam que isso era um sinal de que podiam atacar pessoas trabalhando na rua. Na Suécia, pesquisas de opinião revelam que significativamente mais pessoas querem que trabalhadoras sexuais sejam presas do que antes de a lei ser implementada. Se a proibição é tão danosa, você deve se perguntar, por que é tão popular?

Primeiro, a prostituição é e sempre foi uma estratégia de sobrevivência pra todo tipo de grupos minoritários impopulares: pessoas não-brancas, migrantes, pessoas com deficiência, pessoas LGBT, particularmente mulheres trans e travestis. Esses são os grupos mais punidos pelas leis proibicionistas. Eu não acho acidente ou coincidência. Essas leis possuem apoio político precisamente porque têm como alvo pessoas que os votantes não querem ver ou saber qualquer coisa a respeito.

Por que mais as pessoas apoiam a proibição? Bem, muita gente tem medos compreensíveis sobre tráfico. As pessoas acham que mulheres estrangeiras raptadas e vendidas como escravas sexuais podem ser salvas através do fim de toda uma indústria. Então vamos falar de tráfico. Trabalho forçado acontece em muitas indústrias, especialmente aquelas em que os trabalhadores são migrantes ou vulneráveis em outro aspecto, e é preciso tratar disso. Mas é melhor tratado com legislação que tenha como alvo aquela forma específica de abuso, não toda uma indústria. Quando 23 migrantes chineses não documentados se afogaram colhendo moluscos na Baía de Morecambe em 2004, não houve um clamado pela criminalização de toda a indústria de frutos do mar pra salvar as vítimas de tráfico. A solução claramente é dar a trabalhadores mais proteções legais, permitindo que eles resistam abuso e denunciem às autoridades sem medo de prisão.

A forma como o termo "tráfico" é usado por aí insinua que toda pessoa migrante que se encontra na prostituição foi forçada a isso. Na verdade, muitas pessoas migrantes tomaram a decisão, por necessidade econômica, de se colocar nas mãos de traficantes de pessoas. Muitas fazem isso com o conhecimento de que vão vender sexo quando chegarem a seu destino. E sim, frequentemente acontece de esses traficantes cobrarem taxas exorbitantes, coagirem esses migrantes a fazer trabalho que não querem fazer e cometerem abusos contra eles quando são vulneráveis. Isso é verdade quando se trata de prostituição, mas também de trabalho na agricultura, hotelaria e doméstico. No fim das contas, ninguém quer ser forçado a fazer qualquer tipo de trabalho, mas esse é um risco que muitos migrantes estão dispostos a correr por conta do que estão deixando pra trás. Se as pessoas tivessem a liberdade de migrar legalmente, elas não precisariam colocar suas vidas na mão de traficantes. Os problemas vêm da criminalização da migração, assim como da criminalização da prostituição.

Essa é uma lição da história. Se você tenta proibir algo que as pessoas querem ou precisam fazer, seja consumir álcool, cruzar fronteiras, fazer um aborto ou vender sexo, você cria mais problemas do que os resolve. Proibição mal faz diferença no número de pessoas realmente fazendo essas coisas. Mas faz uma diferença enorme pra segurança delas enquanto as estão fazendo.

Por que mais as pessoas apoiam a criminalização? Como feminista, eu sei que a indústria do sexo é um local profundamente enraizado em desigualdade social. É um fato que a maioria dos clientes são homens [cis] com dinheiro, e a maioria das vendedoras são mulheres sem. Você pode concordar com tudo isso — eu concordo — e ainda assim achar que a criminalização é uma política terrível. Num mundo melhor e mais igualitário, talvez houvesse muito menos gente vendendo sexo pra sobreviver, mas você não pode simplesmente legislar a existência de um mundo melhor. Se alguém precisa vender sexo porque é pobre ou porque mora na rua ou porque não possui documentação e não consegue arranjar emprego, tirar dessa pessoa essa opção não faz dela menos pobre ou dá a ela moradia ou muda seu status de imigração.

As pessoas acham que vender sexo é degradante. Pergunte-se: é mais degradante que passar fome ou ver seus filhos passando fome? Não há clamor pra proibir pessoas ricas de contratar babás ou fazer manicure, mesmo que a maioria das pessoas fazendo esses trabalhos sejam mulheres pobres e/ou migrantes. É fato que mulheres pobres migrantes vendendo sexo é o que faz algumas feministas se sentirem desconfortáveis. E eu entendo por que a indústria do sexo provoca reações fortes. As pessoas têm todo tipo de relações complicadas com sexo.  Mas não podemos fazer política tendo como base apenas sentimentos, especialmente não às custas das pessoas realmente afetadas por essas políticas. Se nos fixarmos em abolição da prostituição, acabamos nos preocupando mais com um tipo específico de manifestação da desigualdade de gênero, em vez das causas.

As pessoas ficam muito obcecadas com a questão "Bem, e se fosse a sua filha fazendo isso?" Essa é a pergunta errada. Em vez disso, imagine que ela está fazendo. Quão segura ela está no trabalho hoje? Por que não está mais segura?

Então, já olhamos criminalização total, criminalização parcial, o modelo Sueco ou Nórdico e legalização, e como elas todas são prejudiciais. Algo que nunca ouço é: "O que as trabalhadoras sexuais querem?" Afinal, nós somos as pessoas mais afetadas por essas leis.




A Nova Zelândia descriminalizou a prostituição em 2003. É crucial lembrar que descriminalização e legalização não são a mesma coisa. Descriminalização significa remover leis que focam na indústria sexual de maneira punitiva, e em vez disso tratar trabalho sexual de forma muito similar a qualquer outro trabalho. Na Nova Zelândia, as pessoas podem trabalhar em conjunto por segurança, e empregadores de trabalhadoras sexuais respondem ao estado. Uma trabalhadora sexual pode recusar um cliente a qualquer momento, por qualquer razão, e 96% das que trabalham na rua afirmam que a lei protege seus direitos. Não houve de fato um aumento no número de pessoas fazendo trabalho sexual, mas a descriminalização tornou esse trabalho muito mais seguro. Mas a lição que temos da Nova Zelândia não é só que sua legislação em particular é boa, mas que, crucialmente, ela foi escrita em colaboração com as trabalhadoras sexuais, com o Coletivo de Prostitutas da Nova Zelândia. Quando se tratava de tornar o trabalho sexual mais seguro, eles ouviram diretamente de trabalhadoras sexuais.

Aqui no Reino Unido, eu faço parte de grupos liderados por trabalhadoras sexuais como o Sex Worker Open University (Universidade Aberta das Trabalhadoras Sexuais). E formamos parte de um movimento global que demanda a descriminalização e a autodeterminação. O símbolo universal do nosso movimento é uma sombrinha vermelha. Temos o apoio das nossas demandas de órgãos mundiais como o UNAIDS, a Organização Mundial de Saúde e a Anistia Internacional, mas precisamos de mais aliados. Se você se preocupa com igualdade de gênero, pobreza, migração ou saúde pública, então os direitos de trabalhadoras sexuais é importante pra você. Abra espaço pra nós em seus movimentos. Isso significa não somente nos ouvir quando falamos, mas amplificar nossas vozes. Resista àqueles que nos silenciam, que dizem que uma prostituta foi muito vitimizada e destruída pra saber o que é melhor pra ela, ou então é privilegiada demais e muito longe das reais dificuldades, não representando as milhões de vítimas sem voz. Essa distinção entrem vítima e empoderada é imaginária. Ela existe somente pra desacreditar trabalhadoras sexuais e fazer com que seja mais fácil nos ignorar. "Não existe isso de 'sem voz'. Só existem os deliberadamente silenciados, ou os preferencialmente não ouvidos", Arundhati Roy.




Sem dúvida muitos de vocês trabalham pra viver. Bem, trabalho sexual é trabalho também. Assim como você, algumas pessoas entre nós gosta de trabalhar, outras odeiam. No fim das contas, a maioria de nós possui sentimentos conflitantes a respeito. Mas como nos sentimos a respeito de nosso trabalho não é o ponto, e como outras pessoas se sentem a respeito certamente também não é. O que importa é que temos o direito de trabalhar de forma segura e sob nossos próprios termos.

Trabalhadoras sexuais são pessoas reais. Nós tivemos experiências complicadas e reações complicadas a essas experiências. Mas nossas demandas não são complicadas. Você pode perguntar a acompanhantes de luxo em Nova York ou prostitutas de bordel no Camboja, e elas vão te dizer o mesmo. Você pode falar com milhões de trabalhadoras sexuais e incontáveis organizações lideradas por elas. Nós queremos a total descriminalização e direitos trabalhistas.

Eu sou só uma trabalhadora sexual no palco hoje, mas estou trazendo uma mensagem do mundo inteiro.

Obrigada.