quinta-feira, 29 de agosto de 2013

sobre tabu (ou quase isso)

Eu publiquei este texto originalmente no Facebook e aqui fiz alterações. É sequencial ao anterior, também uma reflexão gerada através da ~polêmica~ do texto da Lola. Aí vai.

[TW: este post fala sobre abuso sexual]

Faço um pedido (pra algumas pessoas, é uma exigência): quando vocês quiserem tratar de um assunto relacionado estupro, ou se quiserem tratar de estupro em si, seja sob qualquer viés, falem sobre estupro. Sobre estupro. Não sobre "outros crimes". Sobre estupro. Eu faço esse pedido porque (pasmem) um crime sexual não deve ser comparado ou nivelado a outro tipo de crime, e outros crimes que violam pessoas não devem ser comparados ou nivelados entre si.

Eu nunca achei que tivesse que dizer o óbvio, mas abusar sexualmente de alguém é completamente diferente de xingar, assaltar e até de matar alguém, assim como essas outras violências são diferentes entre si, tendo cada uma uma motivação (no caso de assaltos, problemas gerados pelo capitalismo, por exemplo), e a violência praticada contra vítimas de misoginia possui particularidades e motivações específicas geradas pelo patriarcado.

Está a se falar muito sobre os direitos humanos de quem viola os direitos humanos alheios (estupradores, porque parece que algumas pessoas se esqueceram quem violou o que primeiro). Eu já falei em outro post sobre como "não saber" o que é estupro não atenua um estupro e sobre como os acontecimentos na vida de qualquer agressor são completamente irrelevantes no sentido de que não justificam a violência que praticaram contra outras pessoas.

Racionalmente, se eu acho que toda pessoa que estupra deve ser torturada até a morte? Não, muito menos por determinação estatal. Não sinto pena delas quando uma vítima que se vinga de seu abusador, o que é uma questão estritamente pessoal, e podem dizer que eu sou um ser humano vil (agradeço, tá?), só que isso não é relevante neste panorama. A questão é que eu posso querer matar meu agressor, não se deve questionar a legitimidade de sentimento nenhum de vítima nenhuma.

Essa indiferença não se aplica a agir com opressão sobre o estuprador quando ele é marginalizado de alguma forma (como quando, por exemplo, se é racista com um estuprador negro ou capacitista com um estuprador com deficiência), nem se aplica à forma como estupradores de classes marginalizadas são muito mais comumente penalizados que estupradores playboys branquelos mackenzistas.

Não sou uma pessoa burra nem simplesmente irracional: eu sei que pessoas podem conseguir reabilitação e acho que todo mundo deveria saber disso. Quem defende a pena de morte, por exemplo, não tem muitos motivos para tal a não ser o fato de ser extremamente reaça e "desacreditar" da reabilitação, como vejo sendo repetido por aí incansavelmente, porque certas pessoas simplesmente "não têm conserto". No entanto, quando foi que, pelo menos no Brasil, se tentou reabilitação de fato? A minha posição racional, achando que (pessoal e emocionalmente) não me atingiria em nada se eu soubesse que um estuprador foi morto de forma cruel (o que não se aplica, como já dito, a quando isso envolve perpetuar outras formas de opressão), é de que alguém (dentro das atuais circunstâncias e do nosso modelo político) que cometeu um crime sexual deve ser julgado (de preferência por um sistema não retrógrado e misógino como o nosso), condenado, devidamente punido e, se possível, reabilitado (e digo isso à parte das considerações a serem feitas sobre os nossos ~maravilhosos e eficientes~ sistemas judiciário e penitenciário). Isso é razoável. Isso, pelo menos, deveria ser possível.



Num texto que li há um tempo no meu feed de notícias do Facebook, foi dito que o discurso que pede a morte do estuprador "de criancinhas e 'mulheres de bem'" também é o que criminaliza a mulher de minissaia, cujo estupro é colocado em dúvida. Bem, o discurso que criminaliza a mulher de minissaia é aquele que consiste em machismo e misoginia.

Algo a ser considerado é a discrepância entre o número de estupros cometidos, o número de estupradores denunciados, o de estupradores punidos pela lei estatal e o número de estupradores, digamos, punidos pelo furor popular, sendo estes últimos o foco do texto citado acima. Consideremos que os últimos configuram o menor número.

São geralmente torturados e assassinados os estupradores das "mulheres de bem", aquelas de família, e nesses casos, essa vingança praticada em defesa dessa "mulher de bem" provém claramente de um discurso machista no sentido de que serão homens cis* (o pai, o irmão, o marido ou namorado) a defender a honra da vítima (a mulher de bem, tida como propriedade de seus defensores). Serão homens cis os justiceiros e vingadores da mulher que atende às expectativas sociais estipuladas por... homens cis. Será defendida a mulher considerada perfeita pelo patriarcado (lembrando que o pai enfurecido que mata o estuprador da filha pode ser o mesmo homem que considera obrigação de sua mulher fazer sexo com ele e que a mulher perfeita para o patriarcado deve ser cis, ou ao menos passar como cis).




Partindo desse princípio, o número de estupradores torturados (e quetais) será ínfimo, e o será exatamente por conta do discurso que criminaliza a mulher apontada pelo patriarcado como "vadia". Pergunte pra um guerreiro da real e ele vai te assegurar que mulheres de família estão em ameaça de extinção (isso merece um brinde, sim ou claro?). Brincadeira, nunca pergunte nada a um guerreiro da real, mas é procedente a informação de que as mulheres vão, ao longo do tempo, adquirindo mais autonomia (válido lembrar que homens odeiam as mulheres em geral, mas odeiam mais ainda uma mulher dona de si), e de acordo com os preceitos patriarcais em que se baseiam a sociedade em que vivemos, um ato sexual praticado sem o consentimento de uma mulher que é considerada vadia não é estupro — ela pediu, mereceu; não há quem olhe por ela, e seu abusador não será visto como abusador, principalmente porque a sociedade num geral não sabe o que é estupro. Point: eu não estou apontando a pequenez do número de estupradores assassinados para dizer que assassiná-los é necessariamente correto ou não; mais acima, apontei especialmente o que eu acho condenável quando se trata de punir estupradores.

No mesmo texto citado acima, se dizia: "se queremos que as pessoas vejam o sexo como algo natural, agressões de cunho sexual precisam de uma nova análise".

Eu concordo que o caráter "sacro" que foi dado ao sexo e tudo o que a ele se relaciona deve ser questionado. Esse caráter, por exemplo, fundamenta a reação citada anteriormente, baseada num discurso machista. A questão é que esse caráter "sacro", não por coincidência, só existe pra controlar a sexualidade da mulher e de pessoas que não são cis e/ou hétero. A visão de que o sexo é algo sagrado, mas não pro homem cis hétero, porque homem cis nenhum tem a castidade imposta a ele como uma vítima de misoginia tem, contribui para que as pessoas continuem imaginando em suas cabecinhas machistas que estupro acontece somente naquela situação em que uma menininha frágil e recatada encontra um monstro psicopata que a irá violar de forma extremamente violenta, pra que elas continuem achando que existe diferença entre estupro e sexo sem consentimento, pra que as pessoas continuem achando que o estupro de mulheres que não se submetem a imposições patriarcais não é estupro. Mas antes de mais nada, digo que considerei essa frase, no mínimo, muito infeliz. Considero que exista uma linha que delimita a diferença (e a enorme distância) entre sexo e estupro, e essa linha deve estar muito bem delineada, porque estupro não é sexo e existem inúmeras formas, circunstâncias e agravantes para estupro.

Eu não tenho a capacidade de relacionar o sexo deixando de "ser tabu" com a visão de crimes sexuais da forma como isso foi colocado no texto em questão, especialmente porque o tabu só existe quando a sexualidade em questão é feminina: como se as pessoas fossem encarar um estupro da mesma forma que encaram outros crimes hediondos, como sequestro ou latrocínio. Eu não consigo comparar sequestro com latrocínio, nem latrocínio com estupro, e nem estupro com sequestro, muito menos a forma como cada vítima lida com a violência sofrida, seja ela qual for — acho que todos esses crimes são muito singulares e distintos, porque cada um deles acontece por uma motivação diferente. E não tenho a capacidade de fazer essa relação especificamente porque crime sexual não é sinônimo de ato sexual. Eu realmente não vejo como as pessoas se indignariam menos com crimes sexuais caso o sexo fosse visto de forma mais natural porque, ainda que natural, o sexo não perderia seu caráter íntimo e pessoal e autonomia das pessoas (mais especificamente de mulheres) não deixaria de ser algo inviolável. Não deveria ser o contrário? Afinal, é por isso que lutamos, não? Pra que possamos transar se quisermos, quando nós quisermos e com quem nós quisermos sem que nos encham a porra do saco.

Penso que o sexo deixar de ser algo "sagrado" é algo que está necessariamente ligado ao combate da misoginia, de homo, lesbo, bi e transfobia, entre outras coisas. A partir disso, dissolve-se o conceito de "mulher de bem", já que uma mulher ou outra pessoa trans casta não será mais considerada correta a ponto de ser mais merecedora de direitos, de respeito e de autonomia do que outras por ter realizado a vontade dos homens cis, porque pouco importará se ela transa, quantas vezes, com quem, whatever, e se não existem mulheres de bem, não existe o conceito de vadia, e ser vadia não poderá mais ser usado como suposta justificativa para estupro. Então todas as mulheres e outras pessoas trans terão sua autonomia defendida. Será consenso que deve-se haver consentimento, e melhor: em caso de abuso, o silêncio poderá ser quebrado com mais facilidade. Porque o sexo será natural, e não algo que se possa ter das pessoas sem a permissão delas. Por que raios as pessoas passariam a achar que estupro é menos grave? O intuito não é fazer as pessoas acharem o contrário, fazê-las enxergar que estupro é grave?

Sendo assim, creio que a frase destacada seria muito mais coerente, sensível e menos infeliz se fosse algo parecido com: "Se queremos que as pessoas saibam o que é estupro e que ele não é algo natural ou aceitável, o sexo, e como lidamos com ele numa sociedade patriarcal, precisa de uma nova análise".

Algumas pessoas consideraram que, quando a Lola mencionava perdão em seu maldito post, ela falava de perdão social. Eu não acho que perdão seja cabível de forma alguma nesse tema porque vejo como algo simplesmente... pessoal, e o conceito de "perdão social" não me entra na cabeça. Se eu conheço uma pessoa e descubro que ela passou anos na cadeia cumprindo pena por estupro, será uma questão muito pessoal para mim decidir se devo me afastar dessa pessoa ou não e se acredito na reabilitação dela ou não. O que se define por perdão social, nesse caso, eu substituiria pelo cumprimento da pena pelo crime cometido, e que cada pessoa faça o que bem entender com o próprio perdão, inclusive a vítima do crime (eu já disse antes que nenhuma vítima tem obrigação de perdoar alguém que comete uma violência contra ela, right?).

Sobre o suposto "punitivismo excessivo" (oi?) de feministas que a Lola cita, creio que não cabe ao feminismo deliberar sobre o perdão para estupradores, porque não é deles que se trata o movimento feminista. Ele se trata de apoio e empoderamento das vítimas de misoginia e transfobia, da exigência e reivindicação de direitos que são negados a essas pessoas e do combate das formas de opressão que dialogam com o patriarcado, cis-heterossexismo, racismo, gordofobia e tudo o que tem de merda nessa joça outras. Não é papel do feminismo preocupar-se com perdão, nem de longe. Além disso, coisas como castração química nunca foram tratadas como parte da pauta feminista. Eu só vou repetir que: sentir ódio de seu seu estuprador não implica em ser uma pessoa reacionária.

E peço novamente: foquem na coisa certa. Foquem nas milhares de vítimas culpabilizadas que tiveram suas vidas, no mínimo, abaladas e que, de tão policiadas, nem denúncia são capazes de fazer. Eu acho que se está gastando tempo demais pensando em pessoas que nem pagando por seus crimes estão, enquanto suas vítimas são obrigadas a fazê-lo — nós já sabemos a enorme diferença entre o número de estupros e o número de estupradores condenados. Por favor, parem de citar outros crimes enquanto se trata de estupro insinuando equiparações entre eles. Tenham tato e sensibilidade para com todas as vítimas.

Força pra todes nós!

*pessoa que é do gênero que lhe foi designado em seu nascimento; alguém que não é trans.

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